O Estado de S.Paulo
A imagem de uma liderança
unificada cuidadosamente projetada por Pequim desabou no dia 15, quando Bo
Xilai, o exibido secretário do partido para a metrópole de Chongqing e
candidato aspirante a uma posição no comitê permanente do Politburo, foi
sumariamente afastado. O fato de o impacto da queda desse líder destacado, um
verdadeiro príncipe vermelho, ser sentido dentro da China é normal. Levando-se
em consideração a disputa pelo poder e os debates políticos que estão por trás
da demissão, é provável que as reverberações sejam amplamente sentidas pelos
investidores estrangeiros e pelos parceiros internacionais da China.
Bo Xilai inspirava emoções intensas,
reavivando a chama de uma disputa política esquecida desde 1978. Ele era um
político de duas caras, impulsionado por seus laços de sangue, sendo o filho de
Bo Yibo, antigo camarada de Mao. Tinha um talento natural para as técnicas
modernas de comunicação e ampla disposição para os confrontos, características
que só podem ter sido herdadas de seus dias de Guarda Vermelha, na juventude.
A jogada apresenta numerosas ramificações.
Na superfície, esse é o capítulo que conclui a saga de Wang Lijun. Em meados de
fevereiro, o chefe da polícia de Chongqing e capanga particular de Bo foi
escoltado ao sair do consulado americano em Chengdu, onde parecia estar
solicitando asilo. Wang tinha comandado a campanha de Bo Xilai de contra-ataque
à máfia local, preocupando os defensores do estado de direito na China. Bo
tinha também encorajado campanhas contra os principais facilitadores da
corrupção e do crime em outras partes da China, o que fez dele um herói para
alguns, mas uma ameaça aos seus opositores. Desde outubro de 2010, parte da
liderança - o czar chinês dos serviços de segurança, Zhou Yongkang, o diretor
de propaganda, Li Changchun, e o provável sucessor Xi Jinping - tinha abençoado
Bo em Chongqing. Não é mistério que o presidente Hu Jintao e o premiê Wen
Jiabao omitiram seu apoio: na verdade, durante sua última aparição pública no
dia 9, Bo fez questão de convidar Hu para uma visita a Chongqing, algo que o
presidente ainda não tinha feito.
Bo também complementou sua ofensiva com o
lançamento de uma campanha ideológica de retomada das "canções
vermelhas" da era de Mao, que se espalharam pela China no fim de 2010,
representando um grito de guerra para os nacionalistas, os antiliberais e os
defensores da "linha das massas". Há indícios de que os críticos
detidos secretamente entre dezembro de 2010 e julho de 2011, incluindo o
ativista cultural Ai Weiwei, tenham sido ameaçados de serem "enterrados
vivos" ou de receberem o mesmo destino conferido ao ex-presidente Liu
Shaoqi, que morreu "com a Constituição em suas mãos", como relatou Ai
Weiwei. Isso coloca em oposição concreta os defensores de um retorno ao terror
político e os defensores de um rumo dentro da lei para a China.
Assim sendo, a conjuntura de brutais
campanhas de combate ao crime e o panegírico do governo de Mao elevam o caso de
Bo a um patamar político. Ele estava no comando de uma política experimental em
Chongqing - que buscava atrair o capital para o interior do país, financiar
grandes investimentos públicos e solucionar um dos mais graves problemas
sociais da China: a grilagem de terras e a escassez de habitação para os
migrantes vindos do interior. A maior parte desse experimento já estava em
curso antes de Bo chegar a Chongqing, embora ele soubesse como liderar uma intensa
campanha de relações públicas que misturava a defesa esquerdista de políticas
sociais contra o desenvolvimento desigual da China aos convites feitos a nomes
célebres como Henry Kissinger, que ficou impressionado com o crescimento de
Chongqing.
Chantagem. O que irritou os colegas dele
não foi o modelo de Chongqing, mas sim a chantagem implícita nos seus métodos
de combate ao crime, a ponte entre conservadores e populistas de todo tipo
erguida por ele e, em termos simples, a permanente campanha pelo poder que se
desenvolve no centro.
Por enquanto, a sequência de eventos que
levou à queda dele é desconhecida. Seu antigo assessor refugiado no consulado
americano de Chengdu optou por render-se às forças de segurança comandadas por
Pequim e não aos colegas de Chongqing. Descrito publicamente como
"traidor" por Hu Jintao, Wang pode ter tentado incriminar Bo Xilai. É
também possível que Bo, passando cada vez mais tempo em Pequim, tenha chegado a
um acordo de concessões mútuas com alguns líderes, abandonando o infeliz
subordinado como oferenda de paz à liderança coletiva.
A mais alta esfera da política chinesa é
um número de equilibrismo, não um jogo em que todos saem vencedores, disputado
entre os 25 membros do Politburo, incluindo os nove governantes supremos que
formam o Comitê Permanente. A queda de Bo e seu eco no público podem ter dado
início a uma virada na política.
Nos últimos dias, sites populistas e
nacionalistas parecem ter sido fechados ou impedidos de funcionar. No extremo
oposto do espectro, a imprensa oficial começou a pressionar por reformas
políticas, denunciar obstáculos e, acima de tudo, os perigos inerentes à recusa
em promover a reforma. As opiniões liberais são manifestadas em termos mais
explícitos, principalmente as apresentadas por Hu Deping, filho do já deposto
líder liberal Hu Yaobang, que defende uma guinada em direção à democracia. Em
seu último discurso no Congresso Popular, realizado todos os anos, o premiê Wen
fez um sombrio alerta contra um retorno à Revolução Cultural, apresentando uma
detalhada defesa das reformas.
Em si, a esperada queda de Bo do Politburo
após seu afastamento de Chongqing é uma importante jogada no tabuleiro de
xadrez. Por mais que fosse detestado por alguns, ele contava certamente com
laços sólidos com outros príncipes vermelhos. Nos próximos meses, com o
processo de sucessão coincidindo com uma esperada desaceleração econômica, a
liderança coletiva da China se verá preocupada com a desestabilização e as
disputas internas. Poderão os defensores das reformas - em minoria no alto
escalão - trilhar uma trajetória que deixe os colegas seguros com relação a uma
mudança de regime, ao mesmo tempo garantindo significativas mudanças políticas?
Ninguém pode afirmar.
Os parceiros internacionais precisam
esperar para ver se a China será novamente liderada por reformistas ou se uma
vertente mais autoritária vai surgir em reação a esse desafio.
Os conservadores chineses representam uma
mistura de estadistas e ditos esquerdistas que desejam preservar os interesses
absolutos das empresas de propriedade estatal e os monopólios viciados na
economia de salários baixos e altos subsídios voltada para as exportações. Isso
exige uma moeda nacional deprimida e, por sua vez, significa que a gestão
monetária cabe ao dólar, proporcionando lastro e disciplina sem a necessidade
de uma regulação eficiente na China. Chongqing, querida por populistas e
conservadores, depende de uma orgia de subsídios públicos e de salários que
ainda são 50% mais baixos do que aqueles pagos no litoral. Trata-se de uma
estratégia para estender a máquina exportadora chinesa para o futuro,
acompanhada pelos imensos desequilíbrios internacionais.
Os reformistas representam as crescentes
demandas de uma classe urbana de escolaridade elevada, o conjunto de empresas particulares
internacionalizadas ou menores com ambições na alta tecnologia e a pressão dos
consumidores que anseiam por uma parcela mais generosa dos recursos. Por
natureza, esses reformistas querem deter a hemorragia de recursos destinados à
compra de divisas estrangeiras. Eles precisam criar redes de assistência para a
população chinesa, que por sua vez acabaria com níveis insanos de poupança,
reorientando uma parcela disso para os investimentos internacionais. Os
reformistas tentaram reequipar a China com a negociação de salários, as
eleições locais, uma urbanização que poupasse energia e o florescimento da
sociedade civil que colocou as demandas populares acima dos interesses
absolutos.
Ironicamente, Bo e seus pares
neoconservadores se contentaram em acelerar a máquina exportadora e acentuar os
desequilíbrios globais ano após ano, fazendo um malabarismo com a atração fatal
pela ideia de fazer parte da classe global. Talvez nem todos os reformistas
chineses sejam adeptos da paz, mas eles sem dúvida enxergam políticas que
acabarão reduzindo os desequilíbrios internacionais, promovendo uma sociedade
chinesa na qual burocratas e pessoas comuns sejam iguais.
No curto prazo, a vida é mais fácil para
as endividadas sociedades ocidentais com um capitalismo estatal chinês que
empregue mão de obra barata e exporte poupança para o exterior. No longo prazo,
um mercado e um Estado chinês reformado representam o progresso para a
humanidade.
O caso Bo-Wang, digno do filme Tudo pelo
poder, não é um indício forte o bastante para indicar o rumo que será seguido.
Mas é do interesse de todo o mundo acompanhar atentamente o desenrolar dos
eventos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
FONTE: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,tudo-pelo-poder-na-politica-chinesa-,852984,0.htm
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