Dia 6/3/2012, o Serviço de Pesquisas do
Congresso dos EUA [orig. US Congressional Research Service, CRS] divulgou
relatório ao Congresso dos EUA, sobre uma lei vigente que impõe restrições ao
uso de armamento fabricado nos EUA, pelos países que recebem essas armas. Para
os que acompanham o assunto, não há grande novidade no relatório do CRS, por
mais que Israel continue a violar rotineiramente praticamente todas as leis
norte-americanas criadas para regular o modo como são usadas as armas
norte-americanas entregues a outros países.[1]
Segundo nos disse um pesquisador do CRS
que pediu para não ser identificado, em conversa pelo Skype e, depois, em
memorando enviado por e-mail:
"Um estagiário e eu decidimos, quase
de brincadeira, contar as violações das leis de uso de armas americanas por
Israel, desde a aprovação da Lei AECA [US Arms Export Control Act] , em 1976,
até o mês passado [fevereiro de 2012]. Estimamos que tenha havido mais de 2,5
milhões de violações, se se consideram as leis vigentes, a história legislativa
e o objetivo do Congresso ao aprovar aquela lei. Para essa estimativa,
consideramos todas as violações do Acordo ACEA e da lei de 1961, de Assistência
Militar a outros países [orig. Foreign Assistance Act]. Consideraram-se vários
tipos de armas, munição US 155 mm, vários tipos de mísseis, bombas, foguetes e,
evidentemente, bombas de fragmentação. Por exemplo, se Israel fosse julgada por
infringir leis vigentes, a promotoria teria como provar facilmente que as
bombas de fragmentação lançadas contra o Líbano em 2006 foram violação 'extra',
além das mais de 2 mi de bombas usadas na invasão do Líbano e nas invasões
subsequentes (1978, 1993 e 1996). Se se somam também as vezes que Israel usou
armas norte-americanas contra Gaza, Cisjordânia e Síria, o número real de
violações daquelas leis chegará facilmente a vários milhões. Todas acobertadas
pela mais completa impunidade."
Nos termos da lei norte-americana, o
governo dos EUA é obrigado a impor condições muito estritas ao uso contra
populações civis, de armas entregues a países estrangeiros pelos EUA. Violações
dessas condições podem levar à suspensão de fornecimento de armas
norte-americanas ou ao cancelamento de contratos e, em caso extremo, ao
cancelamento de toda ajuda militar ao país violador.
A sessão 3(a) da Lei AECA fixa os
critérios para que países sejam elegíveis para receber armas norte-americanas e
fixa claramente as condições sob as quais aquelas armas podem ser usadas. A
sessão 4 da Lei AECA determina que armas norte-americanas podem ser vendidas a
nações amigas "para uso exclusivo em atos de autodefesa legítima e na
"segurança interna" e para capacitar alguns países a participar de
"medidas coletivas exigidas pela ONU com o objetivo de manter ou restaurar
a paz e a segurança internacionais."
No caso de que o Presidente do Congresso
entenda, nos termos do disposto nas seções acima da Lei AECA, que houve
"violação substantiva" de acordo aplicável a venda de armas, o país
envolvido naquela compra torna-se automaticamente inelegível para receber
qualquer outro tipo de arma norte-americana. O mesmo ato proíbe que os EUA deem
aval, garantias em empréstimos ou participem em outros negócios com o país
violador, que ficará impedido, até, de receber armas por efeito de compras já
feitas ou contratos vigentes.
Os EUA só usaram uma vez essa via, contra Israel.
No verão de 1982, questões levantadas por
pesquisadores em Beirute e pelo jornalista Jonathan Randal do Washington Post,
sobre o uso, por Israel, de armas e equipamentos militares fornecidos pelos EUA
no Líbano, em junho e julho daquele ano, levaram o governo Reagan a declarar,
dia 15/7/1982, que Israel "teria possivelmente" violado o Acordo de
Assistência para Mútua Defesa EUA-Israel [Mutual Defense Assistance Agreement
with the United States (TIAS 2675)] de
23/7/1952 e a Lei AECA.
Nos termos do acordo entre EUA e Israel de
1952, "O governo de Israel assegura ao governo dos EUA que tais
equipamentos, materiais ou serviços que sejam adquiridos dos EUA (...) são necessários e serão usados exclusivamente
para manter a segurança interna, na legítima autodefesa de Israel, ou para
permitir que Israel participe na defesa da área na qual está inserida, ou de
ações e medidas de segurança coletiva ordenadas pela ONU; e que Israel não
empreenderá nenhuma ação de agressão contra qualquer outro estado."
Naquela ocasião, todas as preocupações
centravam-se na questão de se Israel teria ou não usado bombas de fragmentação
fornecidas pelos EUA contra alvos civis, no bombardeio massivo contra a área
oeste de Beirute, durante o sítio de quase três meses.
A Comissão de Assuntos Exteriores da
Câmara de Deputados dos EUA organizou audiências públicas sobre essa questão,
em julho e agosto de 1982. Dia 19/7/1982, o governo Reagan anunciou que passava
a proibir novas exportações de bombas de fragmentação para Israel. A proibição
foi levantada pelo mesmo governo Reagan em novembro de 1988, sob pressão do
lobby pró-Israel sobre a Casa Branca, que ameaçou boicotar a campanha eleitoral
de George H. W. Bush, que concorria contra o senador Walter Mondale.
Os fatos desse evento, centrado em eventos
ocorridos no Líbano, são instrutivos.
Durante a guerra do Ramadan de 1973, a
primeira-ministra de Israel, Golda Meir, vendo que as forças árabes avançavam
sobre Israel, depois da ofensiva síria e egípcia de 6/10, e alertada pelo
ministro israelense da Defesa sobre o desastre iminente, ameaçou o presidente
Nixon: Israel usaria bombas nucleares, a menos que os EUA viessem em socorro de
Israel. A resposta imediata de Nixon foi ordenar embarque imediato, para
Israel, por avião, das armas norte-americanas armazenadas para uso na guerra do
Vietnã, na base Clark da Força Aérea dos EUA, próxima da Baía Subic, nas
Filipinas. O comandante daquela base demitiu-se, depois de responder a
Washington que, com os EUA já na defensiva no Vietnã, aquelas armas eram
necessárias para os soldados norte-americanos. Entre as armas armazenadas na
base Clark havia oito tipos de bombas norte-americanas de fragmentação,
inclusive as M-42, M-46,CBU-58 A/B, APAM (BLU) 77/B, MK 20 "Rockeye",
MK 118 e as "Birdies", que era como os Marines em Beirute referiam-se às M-43 no final de
1982 e 1983.
Durante um encontro no final de junho de 1982
com o primeiro-ministro Begin de Israel, Reagan recebeu um bilhete escrito à
mão, de George Shultz. Baseado na informação que tinha em mãos, Reagan disse
diretamente a Begin que os EUA tinham informação confiável de que Israel estava
usando armas norte-americanas contra civis no Líbano. Nesse ponto da conversa,
nas palavras de Reagan, Begin deu sinais de intensa agitação. Tirou os óculos,
olhou diretamente para Reagan e apontou-lhe o dedo: "Senhor presidente,
Israel nunca usou e nunca usaria armas norte-americanas contra civis, e dizer o
contrário é libelo mortal contra todos os judeus, em todo o mundo."
Imediatamente depois do encontro, Reagan disse ao secretário de Defesa Casper
Weinberger, como relatam o próprio Weinberger e vários biógrafos de Reagan, que
"eu não sei o que significa "libelo mortal", mas sei que o homem
olhou-me diretamente nos olhos e mentiu para mim."
A sugestão original do secretário de
Estado George Schultz a Reagan, de que Israel estava usando dois tipos (as M-42
e as CBU-58) de bombas de fragmentação norte-americanas foi logo transformada e
divulgou-se a 'explicação' segundo a qual Israel. de fato, usara todos os oito
tipos de bombas de fragmentação norte-americanas que Nixon enviara a Golda
Meir, em outubro de 1973.
Mas no final de julho de 1982,
apresentaram-se provas de que Israel usara os oito tipos de bombas
norte-americanas de fragmentação, numa assembleia do Pentágono e outros altos
oficiais, no prédio da Indian Head Ordnance, no rio Potomac, ao sul de
Maryland, segundo depoimento da falecida jornalista americana Janet Lee
Stevens. Ali se expuseram provas materiais ainda preservadas, inclusive fotos e
bombas de fragmentação, algumas das quais ainda cheias de minol, elemento
altamente explosivo, que carreguei pessoalmente na minha mala; todo esse
material foi recolhido pela jornalista Janet e sua equipe de pesquisa (na qual
trabalhavam combatentes palestinos enviados por Yassir Arafat e Khalil al Wazir
(Abu Jihad), alguns combatentes Marabatoun, vários homens da milícia Amal e eu,
para ajudar na tarefa de recolher provas).
O lobby EUA-Israel, não por acaso,
considera absolutamente inócuas as leis norte-americanas sobre controle do uso
de armas norte-americanas. As proibições contra Israel usar armas
norte-americanas contra civis jamais foram consideradas, e como tudo indica
jamais serão consideradas, dentre outros motivos porque o governo israelense
mantém a ocupação de praticamente todo o governo dos EUA.
O valor antigamente tão prezado de todos
os cidadãos norte-americanos, de viverem em nação erguida sobre leis
humanitárias, e a confiança de que o interesse da segurança nacional dos EUA
seria defendido por política externa que brotasse da convicção de que todas as
nações são iguais e merecem idêntico respeito, foram sacrificados, para
retardar o mais possível o inevitável colapso da empresa colonial de apartheid
que Israel tentou implantar na Palestina.
A genuflexão de Obama ("nosso apoio é
incondicional") ante Israel aumenta os riscos que pesam contra os EUA, os
quais, hoje, já ameaçam com armas norte-americanas todo e qualquer país, no
Oriente Médio, e além dele, que sequer considerem a possibilidade de confrontar
a aspiração sionista de dominação regional.
É mais que hora de os cidadãos
norte-americanos retomarem para eles mesmos o próprio país e voltarem a se
integrar à comunidade das nações, em atitude de mútuo respeito por todos os
países e por todos os povos, sem permitir que os EUA continuem comprometidos em
alianças espúrias com seja quem for.
[1] O relatório "U.S. Defense
Articles and Services Supplied to Foreign Recipients: Restrictions on Their
Use", assinado por Richard F. Grimmett, especialista em segurança
internacional, distribuído dia 6/3/2012, de apenas 7 laudas, e que parece ser
documento burocrático, que não avança além de 'possíveis violações' ocorridas
até 1985, pode ser lido em http://www.fas.org/sgp/crs/weapons/R42385.pdf.
Sobre Israel, lê-se lá, em 2012:
"Em duas ocasiões surgiram questões
sobre uso impróprio que Israel teria dado a armamento produzido nos EUA, mas o
presidente (governo Reagan) concluiu expressamente que não houvera qualquer
violação do acordo sobre uso de armas: dia 1/10/1985, Israel usou aviões que
lhe foram fornecidos pelos EUA para bombardear o quartel-general da OLP na
Tunísia; o governo Reagan declarou logo depois que o ataque israelense fora
"expressão compreensível da necessidade de autodefesa", embora
"não se possam desconsiderar os efeitos do bombardeio propriamente
dito". E dia 14/6/1976, depois da missão israelense de resgate no
aeroporto do Entebbe, Uganda, o Departamento de Estado dos EUA declarou
oficialmente que o uso pelos israelenses de equipamento militar fornecido pelos
EUA naquela operação acontecera conforme os termos de acordo vigente desde 1952
entre EUA e Israel" (p. 6).
Tradução: Vila
Vudu
Dr. Franklin
Lamb é diretor do grupo "Americans Concerned for Middle East Peace",
Beirut-Washington; é membro da Fundação Sabra Shatila; e militante a favor de
direitos humanos para os palestinos, no Líbano. É autor de The Price We Pay: A
Quarter-Century of Israel's Use of American Weapons Against Civilians in
Lebanon [O preço que pagamos: 25 anos de uso de armas norte-americanas contra
civis no Líbano]. Vive no Líbano.
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