Desde que, no
segundo semestre de 2011, a economia argentina passou a dar sinais cada vez
mais palpáveis de desaceleração, dispararam vários alarmas no governo. A
Argentina tem problemas sérios na hora de conseguir financiamento externo.
Depende basicamente de sua balança comercial para obter um superávit em dólares
que permita fazer frente aos compromissos externos. Com a economia se retraindo
a moeda norte-americana passa a se tornar alvo preferencial do governo.
Eric Nepomuceno
- Buenos Aires
Nas últimas semanas, uma das perguntas
mais ouvidas na Argentina é a seguinte: Qué pasa con el dólar? Comprar dólares
se tornou algo praticamente impossível. Pois bem: mais do que perguntar o que
anda acontecendo com o dólar, talvez o mais correto seja perguntar o que
acontece com a própria Argentina.
Numa escalada que começou em novembro e
atingiu seu auge agora em meados de maio, o governo de Cristina Fernández de
Kirchner fechou radicalmente a torneira da moeda norte-americana. É
praticamente impossível, para os mortais comuns, comprar um mísero dólar. E
para os não tão comuns, também.
O primeiro resultado foi o ressurgimento
do câmbio negro. Enquanto o câmbio oficial está na casa dos 4,40 pesos, no
paralelo a cotação ronda os seis pesos por dólar. Trata-se, é verdade, de um
mercado residual, que movimenta cerca de vinte milhões de dólares por dia,
contra os quase 400 milhões do mercado oficial e legal. Mas não deixa de ser um
dado palpável no cotidiano de um país acostumado, há décadas, a poupar em dólar.
É um fenômeno singular: todas as classes sociais, sem exceção, poupam em moeda
norte-americana. Há desde os grandes poupadores até os assalariados de renda
mais baixa que transformam cada tostão sobrante em dólares. Índices oficiais
mostram que 66% das vendas de moeda norte-americana nos últimos dois anos
significaram quantias inferiores a dez mil dólares. E mais: do total vendido no
mercado legal e oficial, 44% se referem a somas inferiores a três mil dólares.
Pois as barreiras impostas aos argentinos que
pretendem comprar moeda norte-americana se tornaram tão rígidas que hoje são
quase intransponíveis.
Há vários aspectos a serem analisados
nesse novo cenário. O mercado imobiliário, por exemplo. Os imóveis, tanto
urbanos como rurais, são anunciados e vendidos em dólar, e em dinheiro vivo.
Conheço pessoas que, para finalizar uma
transação imobiliária que envolvia somas consideráveis, recorriam a
carros-fortes para levar o dinheiro.
Outro aspecto importante do uso da moeda
norte-americana como poupança é a profunda e irremediável desconfiança dos
argentinos diante do sistema bancário. Desde o ‘corralito’, que há doze anos
limitou as retiradas de saldos bancários e congelou os depósitos em dólar num
câmbio artificial, a poupança da população avançou sobre terrenos insólitos.
Calcula-se que cerca de 20 bilhões de
dólares, quase a metade das reservas oficiais do país, estejam guardados em
colchões, caixas de segurança alugadas pelos bancos, latas de biscoito, rodapés
ocos em casas e apartamentos, enfim, em qualquer lugar. O argentino desconfia
dos bancos e desconfia da própria moeda. Conheço gente que guarda quantidades
consideráveis de dólares em casa, enterrados em vasos de planta, por exemplo,
ou em pacotes disfarçados no congelador, como se fosse manteiga.
Tudo isso pode parecer muito pitoresco.
Talvez seja efetivamente pitoresco. Mas quando um país de tal maneira
dolarizado bloqueia o acesso ao dólar, a inquietação generalizada torna-se
assunto sério.
Desde que, no segundo semestre de 2011, a
economia argentina passou a dar sinais cada vez mais palpáveis de
desaceleração, dispararam vários alarmas no governo. A Argentina tem problemas
sérios na hora de conseguir financiamento externo. Depende basicamente de sua
balança comercial para obter um superávit em dólares que permita fazer frente
aos compromissos externos.
Com a economia se retraindo – no ano
passado o PIB cresceu 9%, conforme diz o governo, ou 7%, como dizem os céticos,
e em 2012 dificilmente irá muito além dos 3% – de maneira drástica, com as exportações
encolhendo (agora, em abril, houve uma queda de 6% em comparação com abril do
ano passado), a moeda norte-americana passa a se tornar alvo preferencial do
governo.
Assim, além de secar a fonte onde era
fácil encontrar moeda norte-americana, o governo restringiu de maneira radical
as importações. Que ninguém gaste dólares que possam ir para os compromissos
externos.
Desapareceram de lojas e supermercados
geleias francesas, azeites espanhóis, facas brasileiras e massas italianas, da
mesma forma que começam a escassear ferros de passar roupa, motores de
geladeira, computadores ou peças de veículos. Além de bens de consumo, há
queixas das dificuldades cada vez maiores de se importar insumos para a
indústria e a agricultura.
A balança comercial deixou, em abril, um
superávit robusto, de quase dois bilhões de dólares – apesar da retração nas
exportações. A razão é simples é óbvia: as importações foram reduzidas ainda
mais, e de forma brusca. O governo não esconde seu objetivo: alcançar, do jeito
que for, um superávit de dez bilhões de dólares este ano.
Se vai conseguir ou não, ninguém se
arrisca a assegurar. Mas que as medidas adotadas para isso estão sendo
especialmente duras, ninguém se atreve a negar.
Neste outono frio e chuvoso, o dólar é
tema de profunda nostalgia entre os argentinos – muito mais do que o sol.
Fonte: Carta Maior http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20218
Fonte imagem http://www.10emtudo.com.br/_img/upload/artigo/artigo_23_2.jpg
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