Os choques
elétricos, os métodos de interrogatórios, os sequestros em plena noite, a
tortura sistemática, a guerra psicológica, os desaparecimentos e os voos da
morte são técnicas que foram transmitidas pelos oficiais franceses aos
militares sul-americanos. O cérebro destas doutrinas foi o coronel Roger
Trinquier (foto). Professor na Escola das Américas dos EUA, Trinquier é o maior
ideólogo francês da guerra suja cujo lema principal, a partir dos anos 50, foi
que “a tortura é um elemento importante na guerra moderna
contrarrevolucionária”. O artigo é de Eduardo Febbro, direto de Paris.
Paris - “Uma vez na habitação e com a
ajuda dos oficiais, agarramos Bem M’Hidi e o penduramos de tal maneira que
pudesse parecer um suicídio”. A prosa do veterano general Paul Aussaresses não
brilha pela originalidade, mas sim por sua precisão quando descreve as
múltiplas ações ilegais que ele e seus homens protagonizaram na Argélia. A cena
exposta aqui detalha o assassinato de um dos responsáveis do FLN argelino e não
é mais que uma gota d’água na extensa descrição dos assassinatos premeditados
organizados por oficiais do exército francês: torturas, execuções sumárias,
assassinatos disfarçados de suicídios, matança de civis e utilização de
helicópteros para jugar pessoas detidas com vida na Baía de Argel são moeda
corrente ao longo de seu livro “Serviços Especiais, Argélia 1955-1957”.
O militar francês foi julgado por apologia
da tortura. Sua história, sua passagem pelo Centro de Instrução de Guerra na Selva
(CIGS) de Manaus como instrutor se nutrem de um passado, de duas guerras,
Indochina e Argélia, e de quatro personagens centrais que, a partir de meados
dos anos 50, alimentaram com suas teorias contrarrevolucionárias os militares
da América do Sul. O “ensino” começou na Argentina a partir dos anos 50. O
primeiro contato entre os exércitos da França e da Argentina ocorreu no ano
seguinte à queda do general Perón, em 1957. O coronel argentino Carlos Rosas,
recém-egresso da Escola de Guerra de Paris, posteriormente subdiretor da Escola
de Guerra de Buenos Aires, criou um ciclo de estudos sobre “a guerra
revolucionário comunista”. Foi neste marco que chegaram a Argentina os tenentes
coronéis François-Patrice Badie e Patrice de Naurois.
Uma nota do futuro chefe da Polícia
Federal argentina sob a ditadura de Videla, o general Ramón Camps, ilustra a
importância dos dois visitantes: “seus cursos – escreve Camps – estavam
diretamente inspirados na experiência francesa na Indochina e aplicada neste
momento na Argélia”.
Em setembro de 1958, o ministro francês da
Defesa, Pierre Guillaumat, autorizou que 60 soldados argentinos que haviam
seguido esses cursos especiais fossem a Argélia, em plena guerra, em “viagem de
estudos”. Outros 60 soldados viajaram no mesmo ano com destino a Paris e, em
1960, a cooperação entre exércitos deu lugar à criação de uma missão militar
francesa permanente na Argentina. Composta por três oficiais superiores, sua
missão consistia em “aumentar a eficácia técnica e a preparação do exército
argentino”.
Nesse mesmo ano, Pierre Messmer, ministro
da Defesa, enviou a Buenos Aires o chefe do Estado Maior do Exército, general
André Demetz, e o coronel Henri Grand d’Esson. D’Esson é um personagem chave:
foi que ele que realizou na Escola de Guerra de Buenos Aires a célebre
conferência na qual descreve cada um dos aspectos da guerra subversiva e,
sobretudo, o papel central do exército no controle “social da população e na
destruição das forças revolucionárias”. Esse texto de 22 páginas foi publicado
sob o título “Guerra Subversiva” na Revista da Escola Superior de Guerra, nº
338, Julho-Setembro de 1960. Todas essas ideias, viagens e experiências
trocadas desembocarão numa espécie de cooperação continental baseada na dupla
experiência dos franceses e dos argentinos.
Assim, em julho de 1961, o general
Spirito, chefe do Estado Maior argentino, propôs a seus colegas da Conferência
dos Exércitos da América a criação de um Curso Interamericano de luta
antimarxista que seria ministrado por um ex-aluno argentino da Escola de Guerra
de Paris, o coronel López Aufranc. Um total de 39 oficiais, representando 13
países, incluindo os EUA, assistiram a esses cursos. Em uma mensagem enviada à
chancelaria francesa, o embaixador francês na Argentina explica: “cabe assinalar
a presença de militares norte-americanos em um curso onde se deu um espaço
importante ao estudo da luta antimarxista em um espírito e segundo os métodos
baseados na experiência do exército francês”.
Daí ao Plano Condor há uma rota sem
obstáculos na qual se mesclam Videla, presente às aulas onde estavam os
instrutores franceses, e o plano Conintes (Comoção interna do Estado). Entre
1963 e 1973 houve uma interrupção na colaboração francesa mas esta foi retomada
a pedido dos argentinos.
Nos anos 70 abre-se um novo capítulo. A
França mandou a Buenos Aires o coronel Pierre Servant, ex-comandante da
Indochina e da Argélia, especializado em “interrogatórios”. Em abril de 1974,
Servant se encontrou em Buenos Aires com um dos atores do golpe de 76, o
tenente coronel Reynaldo Bignone. Servant, que negou quase todos os fatos
quando a justiça francesa o interrogou há alguns anos, trabalhou no Escritório
nº 3, situado no 12º andar do quartel general do Exército argentino e deu
cursos nessa sede e nas províncias. Sem ligações com a embaixada francesa,
Servant estava vinculado ao Secretariado Nacional da Defesa Nacional (SGDN),
organismo controlado então pelo novo primeiro ministro e ex-presidente francês
Jacques Chirac.
Bussi, Videla, Bignone, Vilas, Harguindeguy,
todos estiveram em contato com Servant, beberam a cultura da tortura francesa e
absorveram os livros teóricos de Trinquier como se fossem água benta. Servant
deixou a Argentina em outubro de 1976, Aussaresses foi para o Brasil em pleno
golpe de Estado.
O Plano Condor já estava em marcha. Uma
nota de Henry Kissinger (ex-secretário de Estado dos EUA) distribuída nas
embaixadas norte-americanas da Europa adverte que o grupo “murder” (assim era
denominado o Plano Condor) operaria na velho continente, especialmente em
Paris. A sede argentina do dito plano, o Centro Piloto, estava localizada no nº
83, da Avenida Henry Martin.
O cérebro destas doutrinas é o coronel
Roger Trinquier. Professor emérito na Escola das Américas dos EUA, Trinquier é
o maior ideólogo francês da guerra suja cujo sermão principal foi assegurar a
partir dos anos 50 que “a tortura é um elemento importante na guerra moderna
contra revolucionária”. A maior parte da estrutura “antirrevolucionária” foi
elaborada por Trinquier. Os historiadores da Guerra da Argélia e da Indochina,
que estabeleceram os nexos entre as práticas aplicadas durante esses conflitos
e as que se viram depois na Argentina, Uruguai, Chile e Brasil tiram uma clara
conclusão: o aperfeiçoamento do choque elétrico, a radiografia das agendas dos
detidos, os sequestros em plena noite, a tortura sistemática, a guerra
psicológica, os desaparecimentos, o uso de arquivos e os voos da morte são
técnicas transmitidas pelos oficiais franceses.
Em um artigo de 4 de janeiro de 1981,
publicado pelo diário argentino La Prensa, o general Ramón Camps assegurou que
essas missões e cursos começaram “sob a direção dos tenentes coronéis Patrice
de Naurois e François-Pierre Badie”. Aquelas sessões serviram para transmitir
as experiências dos oficiais franceses nas guerras da Indochina e da Argélia.
Os documentos existentes provam que esses ensinamentos se baseavam
essencialmente nos trabalhos escritos por outro militar francês que confessou a
prática da tortura na Argélia, o general Massu. O essencial, porém, foi
“ensinado” pelo general Salan e, sobretudo, pelo tenente coronel Roger
Trinquier.
Uma nota do general Massu, com data de 19
de março de 1957, argumenta em defesa de um dos princípios aplicados depois
pelas ditaduras militares da América do Sul: “não se pode lutar contra a guerra
revolucionária e subversiva protagonizada pelo comunismo internacional e seus
intermediários com os procedimentos clássicos de combate. É preciso utilizar
métodos e ações clandestinas e contrarrevolucionárias. É preciso que esses
métodos sejam admitidos com a alma e nossas consciências como necessários e
moralmente válidos”. Essa é a parte mais “filosófica” do “combate”
contrarrevolucionário. A definição da ação prática corresponde a Trinquier,
redator de números manuais militares difundidos na Argentina.
O tenente coronel Trinquier é o
“organizador do conceito de guerra moderna”. Essa guerra se articula em torno
de três eixos: a clandestinidade, a pressão psicológica e a moralidade estrita.
Se se observam os dispositivos técnicos aplicados na Argélia, em seguida
pode-se “ler sua tradução” na Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Brasil.
Trinquier inventou um sistema de busca da informação conhecido na França como
Destacamentos Operacionais de Proteção (DOP). Esse mesmo sistema foi adotado na
Argentina mediante as forças tarefa. O leitor não pode senão assombrar-se com
as semelhanças entre os DOP e as forças tarefa. Os DOP tinham a tarefa de
interrogar os detidos argelinos e utilizavam a tortura. Eles arrancavam
informação sobre a organização político-administrativa dos rebeldes e
realizavam a prisão e a eliminação dos suspeitos em lugares ocultos. Essas mãos
das sombras que foram as forças tarefa se inspiraram técnica e operacionalmente
em todo o aparato repressivo dos DOP franceses.
Na Argélia, Trinquier elaborou a “doutrina
da clandestinidade” que mais tarde causaria estragos durante os golpes de
Estado na América do Sul: repressão baseada no ocultamento dos centros de
detenção, desaparecimento de pessoas e eliminação dos corpos. O recurso a
pessoal militar trajado como civis em comandos que percorriam à noite os
centros urbanos em busca de vítimas ou de suspeitos para torturar é uma técnica
implementada em Argel pelo general Aussaresses e Massu que foi importada para a
Argentina por meio das missões de Patrice de Naurois e François-Pierre Badie,
Trinquier teorizou por escrito sobre as bases da guerra suja e seus “manuais”
se tornaram palavra sagrada nas academias nacionais.
O cronograma das missões francesas à
Argentina permite situar com exatidão que foi a ditadura de Onganía a que
começou a se alimentar com esses ensinamentos. Um testemunho direto do general
Campos demonstra a “irmandade” técnica e moral que existia entre o corpo de
oficiais argentinos e os “missionários” que vinham de Paris com a mala repleta
de métodos para matar. No mesmo artigo citado anteriormente (4 de janeiro de
1981), Camps declarou, como uma forma de homenagem: “Na Argentina primeiro
recebemos a influência francesa, depois a norte-americana. Aplicamos as duas
respectivamente de maneira separada e depois conjunta tomando os conceitos de
ambas até que a norte-americana predominou. Mas é preciso dizer que a concepção
francesa era mais exata que a norte-americana. Esta última se limitava quase
exclusivamente ao aspecto militar enquanto a francesa consistia em uma visão
global”.
As metodologias se alimentam umas das
outras. O general francês Paul Aussaresses foi instrutor militar na base
norte-americana de Fort Bragg, Carolina do Norte, a escola dos paraquedistas
norte-americanos onde se treinavam as “forças especiais” antes de elas irem
para o Vietnã. Um texto ilustrativo escrito pelo coronel francês Henri Grand
D’Esnon e destinado exclusivamente às forças armadas argentinas permite compreender
como se elaboraram as bases “práticas” para que os generais argentinos
incluíssem na vida civil. Gran D’Eson afirma que “a destruição da organização
político-administrativa revolucionária corresponde à polícia, mas o exército
deve apoiar essa ação toda vez que os métodos da polícia resultarem
insuficientes, situação que se produz frequentemente quando a subversão se
generaliza” (trecho de “A Guerra Subversiva”, artigo publicado na Revista da
Escola Superior de Guerra, nº 338, Julho-Setembro de 1960).
O general Aussaresses reconheceu que
ensinou “a tortura e as técnicas de interrogatório da Batalha de Argel” aos
militares brasileiros e também norte-americanos. Isso ocorreu na época em que
ele era professor em Fort Bragg. Nesse quartel geral dos Estados Unidos,
Aussaresses conheceu o coronel Carl Bernard, a quem mostrou um rascunho do
livro do coronel Trinquier, “A Guerra Moderna”. Bernard e Aussaresses resumiram
o livro e o enviaram a Robert Komer, um agente da CIA que será nomeado
conselheiro do presidente norte-americano Lyndon Johnson durante a Guerra do
Vietnã. Segundo o coronel Bernard, Komer montou a operação Fênix a partir do
resumo do Manuel de Trinquier. A Operação Fênix foi lançada no Vietnã no final
dos anos 60: seus métodos são os mesmos que foram empregados depois na
Argentina, Chile, Uruguai e Brasil.
Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
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