Ninguém sabe ao certo quando tudo começou
– e quem sabe não conta –, mas não deve ter sido há muitos meses. Após décadas
de violência desmesurada e incontrolável, o governo da Colômbia e as FARC –
Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, a mais antiga guerrilha em
atividade na América Latina – estão, uma vez mais, mantendo conversações de
paz. Acaba de ser anunciado que no dia 5 de outubro, uma sexta-feira, esse
processo que vem sendo levado a fogo lento será formalmente oficializado em
Oslo, a capital da Noruega.
Houve, em ocasiões anteriores, disposição
para levar o assunto adiante, apesar de todas as muitas dificuldades. Em 1984,
por exemplo, o presidente Belisario Betancur chegou a assinar um cessar-fogo
com Pedro Antonio Marin, o lendário fundador das FARC, que também usava o
codinome de Manuel Marulanda e o apelido de ‘Tirofijo’. Acabou dando em nada.
Anos mais tarde, outro presidente, Andrés Pastrana, negociou com as FARC. De
novo, deu em nada. E se acabaram as tentativas.
Com Álvaro Uribe, aconteceu o contrário.
Nada de diálogo: uma repressão sem precedentes foi desatada país afora,
dizimando parte considerável das FARC e levando junto um número até hoje não
determinado de vítimas civis, causando traumas profundos. Vale recordar que à
frente do banho de sangue desatado por Uribe estava o seu ministro da Defesa, o
mesmo Juan Manuel Santos que agora preside a Colômbia. Durante esse período as
FARC sofreram suas baixas mais dramáticas. O número dois da organização, Raúl
Reyes, foi morto enquanto dormia, num acampamento clandestino no Equador. Três
meses depois, morreu, de causas naturais, Tirofijo, ícone da cruenta luta
armada na Colômbia desde 1964.
Juan Manuel Santos se elegeu pela mão de
Uribe. Entre suas promessas de campanha estava a busca a paz – coisa que todo
candidato colombiano vem fazendo há décadas. Por que dessa vez seria diferente?
Por uma série de razões.
Do lado das FARC, o deterioro é inegável.
Nos últimos oito anos, a organização perdeu a metade dos seus 18 mil homens.
Nem todos foram mortos: o número de desertores e arrependidos, alguns de grosso
calibre, aumentou rapidamente após a morte de Tirofijo. Em 2010, dois golpes
tremendos abalaram ainda mais os já carcomidos alicerces das FARC. Primeiro,
foi morto seu chefe militar, Mono Jojoy. E três meses depois, caiu outra lenda,
Alfonso Cano, sucessor de Tirofijo.
Além disso, desde o começo dos anos 90 as
FARC foram perdendo apoio externo. Com dificuldade crescente para financiar sua
enorme estrutura (o grupo chegou a estar presente em todo o país, e controlava
áreas imensas), desatou uma gigantesca maré de seqüestros, inclusive de
pequenos comerciantes e sitiantes. Isso corroeu sua imagem, e significou perda
de simpatia na população, principalmente do interior. Para culminar, os vínculos
entre guerrilha e cartéis de drogas, cujos primeiros indícios surgiram no
começo dos anos 80, se tornaram mais e mais visíveis. Assim corroeu-se também o
parco apoio que as FARC ainda recebiam do exterior.
Nada disso, porém, estancou o poder da
organização. Se já não dominava áreas do interior, sua capacidade de ação se
manteve elevada. Agora mesmo, em maio passado, uma série de atentados em Bogotá
e em várias regiões do país serviu para mostrar que as FARC ainda podem causar
grandes estragos.
Para arrematar, nem mesmo as dramáticas
distâncias e abismos sociais da Colômbia foram suficientes para justificar, aos
olhos da opinião pública, a luta anacrônica de uma guerrilha que perdeu sua
aura revolucionária.
Claro que os últimos governos colombianos
fizeram de tudo para realçar além dos limites essa imagem negativa, como forma,
inclusive, de diluir seu próprio braço podre – o dos paramilitares igualmente
seqüestradores, igualmente associados ao narcotráfico. Muitos dos assassinatos
cometidos por eles foram atribuídos, acobertados pelo silêncio cúmplice dos
presidentes e da imprensa, às FARC.
Já do lado do governo, o deterioro também
é inegável. Não há como prosseguir com o banho de sangue praticado com o
argumento de combate à guerrilha. Juan Manuel Santos entendeu isso, e resolveu
mudar o cenário.
Não que se trate de um humanista
preocupado com a pacificação do país e a reconciliação entre os colombianos.
Trata-se de um tecnocrata frio e pragmático, que ainda acredita piamente nas
crenças neoliberais, tanto assim que está esquartejando a Colômbia e
privatizando tudo a preço de ocasião. Mas que sabe que nada disso terá futuro
nesse turbilhão de sangue e fogo.
Assumiu a presidência e abriu diálogo com
Rafael Correa, presidente do Equador, com Hugo Chávez, na Venezuela, e com Raúl
Castro em Cuba. Enquanto Uribe, seu mentor, espumava de ódio, Santos continuou
avançando. Implantou leis que poderão afetar a concentração de terras em mãos
dos grandes latifúndios, e outras, que poderão esclarecer crimes cometidos pelos
paramilitares.
O país continua, é verdade, absurdamente
desigual. A economia cresce muito acima da média latino-americana (5,9% no ano
passado, por exemplo), mas a miséria não diminui. Faltam obras de
infra-estrutura, falta um mundo de coisas por fazer. Como preencher essas
lacunas entre nuvens de horror e violência?
Os termos da negociação parecem bem
esboçados. A cada passo, a Colômbia consultou discretamente os governos de
Cuba, da Venezuela e do Equador. Mas ainda falta muita coisa.
Por exemplo: chegar a um acordo aceitável
para os dois lados, de maneira que as FARC se desmobilizem e seus remanescentes
se integrem à vida civil.
Há um antecedente importante: o Exército
M-19, que nos anos 70 e 80 chegou a rivalizar, em poder de ação, com as FARC,
se desmobilizou depois de delicadas negociações de paz.
Hoje, o prefeito de Bogotá é um
ex-integrante do M-19, que faz uma administração dinâmica e de profundo cunho
social.
Não deixa de ser uma esperança.
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