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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A Venezuela se afoga em seu petróleo

Caracas pagou uma parte das importações de alimentos com títulos do Tesouro, sugerindo que faltam divisas ao país. É possível que o governo tenha cometido erros de direção, mas a Venezuela, que possui as maiores reservas de petróleo, sofre por causa de sua riqueza: uma renda que sai do país sem irrigar a economia.


por Gregory Wilpert
É evidente que alguma coisa está errada. Filas de espera intermináveis na entrada das lojas para se abastecer com produtos básicos como leite, farinha, óleo e papel higiênico; aumento da economia paralela, em que vendedores de rua propõem os mesmos bens por preços excessivos. Se os venezuelanos estão sofrendo penúrias pontuais há muito tempo, a piora dessa situação desde o início do ano pegou as pessoas de surpresa. Ela oprime ainda mais a população por ser acrescida dos problemas de infraestrutura que provocam cortes de água e eletricidade. Os que podem enchem as banheiras, para fazer reservas, e todo mundo reza para não perder o que está no congelador...
Nas últimas semanas, o governo anunciou a cada dia, ou quase, novas medidas, prometendo remediar a inflação e a escassez de produtos. A causa dessas dificuldades e as soluções que necessitam são objeto de controvérsias entusiasmadas. Enquanto o regime bolivariano denuncia uma sabotagem econômica perpetrada conjuntamente pela oposição, os meios empresariais e a administração norte-americana, a direita incrimina a negligência do presidente Nicolas Maduro e sua equipe. A polêmica, no entanto, só toca de leve o coração do problema, que consiste em saber como a Venezuela, um dos maiores produtores de petróleo do planeta, deveria administrar o maná que tira de seus recursos naturais.
Antes da chegada de Hugo Chávez ao poder, em 1999, os enormes lucros do ouro negro só enriqueciam as companhias petroleiras. O ex-presidente, assim que foi eleito, inverteu essa política, por um lado ao militar combativamente no seio da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) por um aumento do preço do barril, por outro obrigando os exploradores privados a pagar o que deviam à coletividade. Antes, a indústria venezuelana de combustíveis depositava apenas 30% de seus ganhos no Tesouro; ao longo dos anos seguintes, a taxação aumentou para 70%.
Quando os cofres do Estado começaram a se encher de petrodólares, e depois que a oposição fracassou, em 2003, em bloquear a exploração petroleira com o objetivo de derrubar Chávez, a pergunta sobre para que todo esse dinheiro deveria servir e qual política monetária seria a mais adequada se tornou crucial para o futuro da revolução bolivariana. Seria preciso fazer um fundo de reserva para o caso de dias difíceis, como a Noruega; investir em grandes e opulentas infraestruturas, como o Catar; ou destinar o dinheiro a programas sociais e à luta contra a pobreza? A jovem República Bolivariana optou pela terceira solução, combinada com uma política de controle das taxas de câmbio para frear a fuga de capitais, que se tornou o maior desafio para o governo depois da tentativa de golpe de Estado fracassada, da oposição, em 2002.
Unida ao crescimento demográfico, essa política permitiu aos venezuelanos consumir 50% a mais de calorias do que em 1998, ao mesmo tempo em que reduziu as desigualdades bem mais rápido que em outros lugares na região. Mas a redistribuição da renda petroleira aos pobres apresentava evidentemente um risco de inflação, já que, ao aumentar o consumo interno bem mais rápido do que o crescimento da produção, provoca-se consequentemente a elevação dos preços.
Porém, já fazia vinte anos que a Venezuela sofria com a loucura dos preços, desde a “sexta-feira negra” de 18 de fevereiro de 1983, quando o país desvalorizou bruscamente sua moeda. Durante a década das duas presidências anteriores à de Chávez, a inflação atingiu em média 52% ao ano. Uma das primeiras missões do presidente bolivariano consistiu em dominar essa instabilidade. Com uma taxa anual de 22% em média entre 1999 e 2012, esse objetivo foi parcialmente atingido. Contudo, a calmaria não sobreviveu à morte de Chávez, em março passado. A inflação disparou novamente este ano, para culminar em 49% em setembro.
Contrabando e fuga de capital
O segundo desafio econômico é o fenômeno desmoralizante do esgotamento dos estoques, sobre o qual até mesmo o Banco Central da Venezuela registrou a quase duplicação em um ano. Segundo o poder socialista, a alta burguesia local estaria orquestrando a sabotagem das redes de abastecimento e a especulação sobre o mercado negro, a fim de colocar em xeque a política do governo. O presidente Maduro reiterou essas acusações no dia 8 de outubro, em um discurso diante da Assembleia Nacional: “A economia venezuelana atravessa uma conjuntura particular, na qual o aparelho de produção do país sofre diretamente a ofensiva da especulação, da apropriação, do contrabando e do mercado negro de câmbio”.1
O chefe de Estado compara as dificuldades atuais da Venezuela às que o Chile conheceu antes do golpe de Estado de Augusto Pinochet, quando o setor privado, ajudado pela CIA, fomentou penúrias para enfraquecer o presidente Salvador Allende. A oposição, por sua vez, imputa as dificuldades do país à má gestão governamental. Não está fora de cogitação que ambos os lados tenham razão... O governo deixou, efetivamente, campo livre para os empresários se lançarem nas falcatruas das quais agora os acusa, e se os tráficos, o contrabando e a fuga de capitais se revelam mais lucrativos e mais cômodos do que os investimentos legais na produção e na distribuição, isso quer dizer que a política pública deve ter falhado em algum ponto.
O desafio de construir o socialismo em apenas um país, quando o capitalismo governa o resto do mundo, não favorece os projetos do regime bolivariano. O Chile do início dos anos 1970 e a Nicarágua dos anos 1980 se confrontaram com o mesmo obstáculo. Nesses dois países, como na Venezuela, a vontade política de se libertar das leis do capitalismo provocou uma fuga maciça de capitais, criando uma instabilidade diante da qual os governantes se encontraram desarmados. O controle dos preços e das taxas de câmbio permite, claro, em certo limite, remediar essa contraofensiva, mas cria outros grandes problemas, como a escassez de produtos.
Se a Venezuela conseguiu por muito tempo limitar esses desgastes, foi porque sua força petroleira lhe dá uma vantagem comercial e monetária importante. Mas isso não é suficiente para garantir a estabilidade da moeda, na medida em que o setor privado, que continua sendo muito influente na economia do país, concentra em suas mãos uma parte importante da exploração petroleira. Ele dispõe, por consequência, de enormes volumes de capitais que só desejam deixar o país, ainda mais se investimentos mais rentáveis esperam por eles lá fora.
Sob o governo de Maduro, como sob Chávez, o principal mecanismo de proteção da moeda nacional continua sendo a Comissão de Administração da Moeda (Cadivi), que fixa as condições nas quais os venezuelanos podem trocar, pelas taxas oficiais, seus bolívares por dólares. A operação só é autorizada em casos muito precisos, como a importação de produtos não fornecidos pelo mercado local, viagens, ajuda a parentes instalados no estrangeiro ou ainda algumas compras pela internet.
Enquanto o governo autoriza um acesso relativamente fluido às moedas estrangeiras, a taxa de câmbio no mercado negro e a inflação se mantêm num teto suportável. Mas a Venezuela importa 70% dos bens que consome. Ela procura, então, manter uma taxa de troca favorável à sua moeda, a fim de que os preços finais dos produtos de importação não sejam muito altos. No entanto, essa política é fonte de distorção: ao longo do tempo, a distância aumentou entre o valor real do bolívar, que uma inflação – mesmo que sob controle – deprecia mecanicamente no mercado interno, e seu valor nominal no mercado de moedas, que é mantido a um nível elevado. Isso tem por efeito prejudicar as indústrias venezuelanas, já que o custo de seus produtos aumenta mais rápido do que o dos bens de importação. A consequência é que os produtores locais são esmagados pela concorrência. Foi por isso que o governo decidiu limitar as importações apenas aos produtos fabricados no estrangeiro; mas essa condição se revela frequentemente insustentável. Os alimentos básicos, por exemplo, são na maior parte produzidos na Venezuela, mas em quantidade insuficiente para satisfazer a demanda.
A outra consequência infeliz do controle de câmbio se deve ao fato de que, com o bolívar se desvalorizando no mercado interno e ao mesmo tempo continuando forte no mercado de câmbio, o abismo entre a taxa de troca oficial e a taxa de troca praticada no mercado negro aumenta inexoravelmente. Isso significa que o acesso aos guichês de câmbio governamentais se tornou um privilégio cada vez mais cobiçado e disputado. Um ano de estudos em uma universidade privada venezuelana, por exemplo, custava 46 mil bolívares no início de 2010, ou seja, o equivalente a US$ 10 mil. Hoje, custa a mesma coisa, mesmo que, tecnicamente, o bolívar tenha perdido neste meio-tempo 50% de seu valor no solo venezuelano. Em três anos, o preço de um ano universitário então diminuiu pela metade.
Falta de jogo de cintura do regime
Em suma, o controle da taxa de câmbio se tornou um instrumento vantajoso principalmente para as camadas mais ricas da população, já que as compras de dólares são reservadas aos que têm meios para viajar, enviar dinheiro para parentes ou financiar estudos no estrangeiro. Essas três motivações cobrem quase 20% das compras de moeda efetuadas em 2012 dentro da Cadivi, ou seja, US$ 5,8 bilhões − o que significa que a Venezuela é o único país da América Latina onde os envios de dinheiro acontecem do sul para o norte, em vez de empregar o caminho contrário.
O governo tenta lutar contra o mercado negro, mas seus esforços se revelaram até agora malsucedidos. Em princípio, não é possível efetuar transferências bancárias para o exterior sem autorização. Mas desviar-se desse obstáculo é uma brincadeira de criança: basta entrar em contato com um intermediário que possui contas ao mesmo tempo aqui e lá. Uma vez que o dinheiro foi depositado em sua conta venezuelana, ele vai desbloquear o valor correspondente em sua conta nos Estados Unidos, fazendo a dedução de sua comissão e dos ganhos que tira das taxas de câmbio no mercado negro. É difícil para o Estado impedir um tráfico tão fluido.
Os efeitos perversos do controle de câmbio pioraram ainda mais desde o início de 2013. A primeira razão, obviamente, é a iniciativa conjunta dos empresários favoráveis à oposição para exacerbar as dificuldades econômicas do país, aproveitando as oportunidades abertas pela ausência de Chávez durante sua doença, e depois com sua morte. Diversas vezes ao longo deste ano as autoridades descobriram galpões lotados de óleo de cozinha e outros produtos alimentares básicos, claramente retirados do circuito de vendas para agravar a escassez.
Acrescenta-se a isso a falta de jogo de cintura do regime: no momento em que o Estado abaixou em 32% a taxa de câmbio oficial do bolívar, em fevereiro de 2013, ele também suprimiu seu sistema de troca secundário, chamado Sistema de Transações para os Fundos de Moedas Estrangeiras (Sitme). A concomitância dessas duas medidas, anunciadas um mês antes da morte de Chávez, teve um impacto destrutivo sobre a economia, estimulando a inflação, que aumentou em 2,8% a partir do mês seguinte.
Com o tempo, os venezuelanos aprenderam a viver bem ou mal nesse flagelo. Os poupadores, preocupados em proteger seu pé-de-meia contra a depreciação constante de sua moeda, se resguardam efetuando investimentos seguindo consultorias. Por ordem decrescente de fortuna, os mais afortunados investem no mercado imobiliário, nos automóveis e na Bolsa (a com melhor desempenho do mundo, com uma alta de 165% entre janeiro e outubro de 2013), razão pela qual esses três mercados, desde a instauração do controle de câmbio em 2003, explodiram a um ritmo bem superior que o da inflação.
Mas o dólar conserva seu papel de valor-refúgio. Quando a inflação disparou, no começo do ano, até atingir 6,1% em maio, muitos venezuelanos se encheram de notas verdes do mercado negro, provocando um novo aumento da taxa de câmbio clandestina. Como esta serve de base para o cálculo dos preços da maioria dos produtos disponíveis no comércio, esse acesso de febre teve por efeito estimular a inflação e, por consequência, provocar uma precipitação ainda maior sobre os dólares. Trata-se então de um círculo vicioso com uma potência devastadora rara no qual se encontra presa a economia venezuelana.
O abismo cada vez mais profundo entre a taxa de câmbio oficial e suas consequências na prática provoca pesados danos à sociedade. Não é raro que os produtos subvencionados pelo Estado – principalmente alimentos – aterrissem em contrabando nos países vizinhos. Os moradores das zonas fronteiriças veem regularmente desfilar caminhões carregados de leite, óleo e arroz, que vão descarregar sua carga na Colômbia, no Brasil ou na Guiana. As alfândegas fecham os olhos. Entre o preço desses produtos na Venezuela e as tarifas pelas quais são negociados do outro lado da fronteira, a margem é confortável e permite aos traficantes garantir a boa vontade dos funcionários públicos. E pouco importa se a escassez duplica no país.
No fim das contas, o sistema de controle de câmbio, instrumento de uma política soberana e anticapitalista, é usado em benefício dos venezuelanos mais ricos. Os privilegiados que têm acesso ao mercado de câmbio oficial embolsam lucros exorbitantes ao adquirir mercadorias pelas taxas legais para revendê-las a preços vertiginosos no mercado negro. Na República Bolivariana, taxas de lucro de 100% a 500% se tornaram moeda corrente.
O governo entendeu que não podia permanecer inativo. No dia 8 de outubro, Maduro pediu à Assembleia Nacional que autorizasse o governo por decretos, com o objetivo não somente de combater a corrupção, mas também de reerguer a economia. Pouco depois, Rafael Ramirez, presidente da Companhia Petroleira do Estado, Petroleos de Venezuela (PDVSA), e vice-presidente da República, encarregado das questões econômicas, anunciava o lançamento de um novo sistema de câmbio “a leilão”, abrindo acesso a US$ 100 milhões por semana. Destinado a substituir o antigo Sitme, esse regime já suscita, no entanto, as críticas de muitos economistas, que o julgam muito tímido para satisfazer a demanda e secar o mercado negro.
A única solução para impedir a evaporação dos capitais consistiria sem dúvida em reafirmar o controle do Estado sobre a economia, por exemplo, pela nacionalização total do setor bancário ou por um controle mais rigoroso das importações. Muitos dos antigos adeptos de Chávez pedem por essa reorientação, mas o governo Maduro parece ter se comprometido com um caminho mais tortuoso.
A situação excepcionalmente difícil da Venezuela se deve ao mesmo tempo ao seu statusde grande produtor de petróleo e ao seu comprometimento em construir um sistema não capitalista. Os lucros do petróleo não mudam em nada o fato de que a construção de uma ilha de socialismo num oceano liberal ocasiona mecanicamente uma epidemia de evasão de capitais. O maná petroleiro sai do país tão rápido quanto entrou, deixando atrás de si uma população desgastada pela inflação, pela escassez e pela instabilidade.
Gregory Wilpert é sociólogo, chefe de redação do site venezuelanalysis.com. Autor de Changing Venezuela by taking power: the policies of the Chávez government.

Ilustração: Lollo

1. El Universal, Caracas, 10 out. 2013
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1523

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