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sábado, 15 de fevereiro de 2014

A Primavera Árabe ainda não disse sua última palavra - Le Monde Diplomatique Brasil


por Hicham Ben Abdallah El Alaoui
Em seus primórdios, a Primavera Árabe deitou por terra os preconceitos ocidentais. Ela colocou em maus lençóis os clichês orientalistas sobre a incapacidade congênita dos árabes de conceber um sistema democrático e abalou a crença segundo a qual eles não mereceriam nada melhor do que ser governados por déspotas. Três anos depois, as incertezas permanecem intactas quanto ao desfecho do processo, que entra em sua quarta fase.
Na primeira etapa, concluída em 2011, teve início uma onda gigantesca de reivindicações relativas à dignidade e à cidadania, alimentada por protestos intensos e espontâneos. A etapa seguinte, em 2012, marcou um momento em que as lutas se voltaram para si mesmas, para o contexto local e para o ajustamento delas à herança histórica de cada país. Simultaneamente, forças externas começaram a reorientar esses conflitos para direções mais perigosas, levando os povos à situação que conhecem hoje.
No ano passado, assistiu-se a uma terceira fase, marcada pela internacionalização e pela ingerência cada vez mais agressiva das potências regionais e ocidentais. O foco sobre as rivalidades entre sunitas e xiitas se generalizou por todo o Oriente Médio, pressionando cada Estado e cada sociedade a se polarizar sobre o eixo das identidades religiosas. O antagonismo entre o islamismo e o secularismo se cristalizou em grande escala. O perigo advém do fato de que as rivalidades geopolíticas e as tensões religiosas se sobrepõem às especificidades de cada país e parecem reduzir os atores locais a simples fantoches nas mãos das potências estrangeiras.
A comparação entre a Síria, o Bahrein, o Egito e a Tunísia revela um espectro multicor de influências internacionais. Nos dois primeiros países, as intervenções externas, em particular as sauditas, precipitaram a guerra civil e exaltaram as facções mais radicais dos revoltosos. No Egito, o apoio ocidental à política autoritária do novo regime esmagou as motivações democráticas iniciais. Apenas a Tunísia parece engajada num caminho promissor, à medida que permanece relativamente poupada dos confrontos geopolíticos, religiosos e ideológicos que varreram a região.
Entretanto, em cada um desses países, a Primavera Árabe deixou a marca indelével de uma mobilização popular na qual os cidadãos tomaram consciência de sua força. Ela abriu espaços de contestação que o Estado não pode mais fechar a não ser pagando o preço de uma repressão politicamente dispendiosa. Seja qual for a incerteza do futuro, a condução dos assuntos com mão de ferro que prevalecia anteriormente desapareceu por completo.
Na Síria, a guerra nasceu de um movimento de desobediência civil rapidamente transformado em levante popular de grande envergadura. A reação brutal do regime aos primeiros alertas não conseguiu intimidar os manifestantes, mas deflagrou um ciclo devastador de protestos e repressão. Se o aparato militar do presidente Bashar al-Assad rapidamente aniquilou a esperança de uma revolução pacífica, foram os cálculos geopolíticos e as questões religiosas que nela se intrometeram mais tarde que precipitaram a insurreição numa guerra civil abominável: até hoje, 120 mil mortos, 2,5 milhões de refugiados e 4 milhões de pessoas que tiveram de deixar seu lar.
Desde sempre, a Síria se caracterizou pela diversidade de suas tradições religiosas e comunitárias. Ao explorar as tensões internas, as potências externas detonaram esse frágil mosaico. O país se reveste de uma importância capital em uma região onde se entrechocam os interesses dos Estados Unidos, de Israel, da Arábia Saudita, do Catar, da Jordânia, da Turquia e do Irã. A divisão ancestral dessa parte do mundo entre as duas correntes rivais islâmicas, a sunita e a xiita, serviu de alavanca para esses Estados desejosos de tentar ampliar sua influência.
O clã dos alauitas, que compõe o regime de Al-Assad, é considerado parte de um arco xiita que se estende do Irã ao Líbano do Hezbollah, ao passo que os grupos de rebeldes pertencem, na maioria, ao lado sunita. Contudo, tais filiações recobrem um tabuleiro bem mais diversificado. De modo muito semelhante aos afegãos mujahedinsda década de 1980, a oposição síria se ressente gravemente de coesão. Seus representantes no exterior conhecem mal ou ignoram por completo os grupos armados que lutam no território. Estes vão buscar apoio em outra parte: ao norte do país, eles contam em geral com a ajuda da Turquia e do Catar, enquanto ao sul recebem armamento e assistência da Jordânia, da Arábia Saudita e dos Estados Unidos.
Essas imbricações geopolíticas dão lugar a paradoxos que contradizem uma leitura estritamente religiosa do conflito. Riad festejou o golpe de Estado militar no Egito contra a Irmandade Muçulmana, que é, entretanto, de mesma obediência que os grupos que ela arma no front sírio. O recente degelo entre Washington e Teerã relativiza de igual forma a visão simplista veiculada com frequência pelas mídias internacionais: Israel e Arábia Saudita se julgam abandonados por Washington perante Teerã e se veem repentinamente como aliados de fato.
A cisão entre forças não religiosas e islâmicas pesa igualmente. Se o Exército Livre da Síria (ELS) reivindica sua origem secular, a maior parte dos outros grupos compõe um mosaico religioso que vai dos islâmicos moderados até os jihadistas ligados à Al-Qaeda, passando pelos salafistas. Torna-se difícil, por conseguinte, avaliar em que medida as facções mais radicais, como a Ahrar al-Cham e o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EIIL), manifestam uma legítima convicção religiosa ou utilizam sua bandeira para fins mais prosaicos. Por fim, tal fragmentação, fonte de discórdias crescentes, abriu um segundo front no próprio seio do campo rebelde, conforme demonstram os combates mortais entre o ELS e o EIIL no norte da Síria, no início de janeiro. Essa dispersão da guerra civil não é estranha à sobrevivência do regime de Al-Assad.
O conflito sírio é muitas vezes apresentado em termos de uma mecânica simples: quando o poder se enfraquece, a oposição se fortalece, e vice-versa. É esquecer que dinheiro e armas não são tudo numa guerra e que é preciso também um contingente humano. Nessas condições, a penúria ameaça constantemente o regime de Damasco. O reforço dos exércitos Al-Qods do Irã, das unidades do Hezbollah libanês e das milícias locais (chahibas) é, assim, vital à preservação do poderio militar. Com o recurso às armas químicas não sendo mais uma opção, o poder depende mais do que nunca desses reforços externos.
A Irmandade Muçulmana desmistificada
A principal fonte de preocupação é a nova radicalização da oposição síria e do regime. O Front Al-Nosra e o EIIL, que dizem pertencer à Al-Qaeda, se beneficiam largamente da ajuda proveniente do Golfo. A Arábia Saudita também conquistou sua ingerência sustentando grupos não filiados ao movimento terrorista fundado por Osama bin Laden, perturbando assim a relação de forças no cerne da oposição. Por sua vez, o Exército regular da Síria sofreu profundas modificações. Desde a batalha de Al-Qusayr, em abril de 2013, as brigadas Al-Qods e o Hezbollah redefiniram o contingente em pequenas unidades móveis organizadas como milícias.
Por todas essas razões, as potências estrangeiras pouco se preocupam em fazer cessar o conflito. Os Estados Unidos não podem se permitir entrar numa nova guerra e se acomodam ao ver sua hegemonia bater em retirada no Oriente Médio. Desde então, sua estratégia consiste em privilegiar a Ásia. Dentro da lógica conservadora norte-americana, Washington só tem a ganhar com a deterioração da questão síria: conforme apontado por Edward Luttwak no New York Times,1 a sabedoria ordena que se deixe os combatentes se matar uns aos outros tanto quanto possível, já que o triunfo de uma oposição dominada pelos islâmicos seria tão nefasta aos interesses ocidentais quanto a vitória do clã de Al-Assad. Já o aliado saudita veria com bons olhos o colapso do regime de Damasco e poderia se contentar com um país fragmentado, à beira do caos, que cortaria o eixo xiita que liga Líbano e Irã. Uma Síria ingovernável também poderia contentar Teerã e Moscou, arriscando deixar um membro da família Al-Assad reduzido ao papel de fantoche instalar-se em seu palácio de Damasco, como o fez, por algum tempo, seu homólogo afegão.
Uma paz a curto prazo parece, portanto, muito improvável. Se os autores das atrocidades cometidas sobre o território devem responder por seus atos, as potências estrangeiras que fomentam tais violências assumem uma grande parcela de responsabilidade. A guerra civil tornou-se tão assustadora que poucos ainda se recordam dos cortejos dos estágios iniciais, quando o povo reclamava simplesmente o direito à dignidade e à cidadania. Nesse quadro trágico, esse aspecto talvez seja o mais triste.
No Bahrein também as potências estrangeiras demonstram sua aptidão para exacerbar as tensões locais, porém de uma forma bem diferente da Síria. As primeiras manifestações nessa pequena ilha do Golfo traduziam um desejo de democracia amplamente compartilhado: estima-se que, no seu auge, elas mobilizaram quase um quinto da população. Se a intervenção militar do Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo (CCG)2 rapidamente cortou no nascedouro tal aspiração coletiva, o fracasso do movimento se explica também e talvez principalmente pela irrupção da geopolítica e das palavras de ordem religiosas.
Enquanto na Síria um poder alauita enfrenta uma população majoritariamente sunita, o Bahrein é uma monarquia sunita povoada majoritariamente por xiitas. Daí por que os respectivos interesses das duas potências rivais da região, o Irã e a Arábia Saudita, ali se entrechocam violentamente. Em razão da proximidade geográfica, Riad exerce sobre seu vizinho um direito de vigilância particularmente intrusivo. Apoiada pelo Ocidente, a intervenção das tropas da CCG respondia de forma explícita à intenção de Riad de manter o Bahrein dentro de sua zona de influência.
A princípio, xiitas e sunitas marchavam lado a lado, sobre uma linha única de reivindicação democrática. Foi somente quando os sauditas wahabitas começaram a trabalhar no aspecto religioso que este, pouco a pouco, rechaçou os objetivos políticos. Entretanto, essa captação da dinâmica local por interesses externos colocou em destaque a fragilidade do regime. Sem a injeção financeira, militar e política dos Estados do Golfo, a dinastia Al-Khalifa não disporia dos meios nem da legitimidade necessários para se manter no poder. Sua sobrevivência só depende agora de seus protetores estrangeiros.
A internacionalização do conflito destruiu uma chance histórica de ver a sociedade do Bahrein resolver suas velhas tensões religiosas pelo diálogo democrático. Enquanto as mesmas causas desencadearam a explosão da Síria, no Bahrein elas mantêm sob respiração artificial um regime autocrático vergonhoso.
Diferentemente da Síria e do Bahrein, o Egito é um país forte e autônomo o suficiente para enfrentar as pressões externas. As grandes potências estrangeiras não estão menos intimamente ligadas ao drama político que ali se encena. Em julho de 2013, um golpe de Estado militar derrubou o governo depreciado, porém legítimo, da Irmandade Muçulmana. Em qualquer outro lugar, uma ruptura tão brutal do processo democrático teria provocado uma indignação mundial. No Egito, entretanto, ela obteve a aprovação das chancelarias ocidentais. Os Estados Unidos e seus aliados europeus, mas também a Arábia Saudita e seus vizinhos do Golfo, assim como a Jordânia e Israel, acomodaram-se diante do golpe de força militar, que os livrava de um Mohamed Morsi democraticamente eleito, mas tido como incontrolável.
Tão logo o novo regime se estabeleceu, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Kuwait se apressaram em lhe fornecer uma ajuda econômica de US$ 12 bilhões, ou seja, nove vezes o US$ 1,3 bilhão anual de assistência militar norte-americana. A escolha de Riad se explica pelo menos por duas razões: de um lado, a desconfiança de longa data do regime wahabita em relação à Irmandade Muçulmana; de outro, o medo de que o exemplo da jovem democracia egípcia se transformasse num caldeirão de óleo fervente e estimulasse seus próprios protagonistas a contestar o reino do clã Saud.
O fato de o Ocidente ter dado sua bênção ao golpe de Estado militar não aumentou seu prestígio no seio da população egípcia, escaldada pela mensagem implícita segundo a qual uma democracia só é aceitável se coloca no poder os candidatos investidos pelas potências estrangeiras. A ironia da história é que, ao voltar as costas à Irmandade Muçulmana, Washington e seus aliados sabotaram por sua própria conta o projeto árabe-ocidental de um bloco sunita coerente suscetível de conter a influência iraniana, provocando ao mesmo tempo uma insólita convergência das políticas estrangeiras saudita e israelense.
É verdade que o golpe de Estado do general Abdel Fattah al-Sissi resultou também de uma situação econômica desastrosa e da impopularidade crescente de Morsi. Mesmo seus eleitores tinham perdido a confiança na capacidade do governo de responder aos problemas do desemprego e da corrupção. As ambições hegemônicas da Irmandade Muçulmana, que se recusava a dividir uma mínima parcela do poder, precipitaram seu descrédito. Elas também entraram em choque com a resistência no aparelho de Estado, composto por policiais, juízes e fulus(dignitários do antigo regime) visceralmente hostis à confraria. Esse “Estado profundo” não perdeua ocasião de emergir até a superfície. Uma tarefa ainda mais fácil pelo fato de que a Irmandade Muçulmana, ao colocar de escanteio juízes, governadores e notáveis para impor seus próprios homens no seio do aparelho de Estado, também estava afastando seus aliados potenciais no seio da Igreja e dos salafistas.
O raio que se abateu sobre eles significa igualmente o fim da aura de invencibilidade que rodeava outrora o islamismo. A confraria não era um grupo revolucionário nem o ramo local de qualquer frente terrorista internacional, mas sim uma organização sobretudo conservadora que defendia a piedade religiosa, o liberalismo econômico e a caridade em relação aos mais pobres. Ela não se arrogava nenhum monopólio sobre o islã e não mantinha nenhuma ligação com os salafistas, tampouco com os teólogos do Al-Azhar.3 Seus adeptos vivem hoje na prisão ou na clandestinidade. Mais prudentes, ou mais hábeis, os salafistas do partido Nour manifestaram seu pragmatismo demonstrando submissão ao regime militar. No fim das contas, a esfera islâmica diversificou-se e fragmentou-se ao mesmo tempo, fazendo emergir novas figuras fora dos círculos escolásticos e políticos tradicionais.
Prestar contas ao povo
Durante sua breve passagem pelo poder, a Irmandade Muçulmana evitou impor uma islamização forçada à sociedade. Seu objetivo consistia mais em consolidar sua dominação política no terreno institucional. Foi apenas por um acaso que, quando do golpe de Estado, o governo Morsi defendeu-se fazendo referência ao argumento da legitimidade (chara’iya) em vez de recorrer à lei islâmica (charia). Em relação a isso, o medo ocidental de ver a Primavera Árabe eclodir num contágio islâmico no Oriente Médio parecia não ter muita consistência.
No próprio Egito, o golpe de Estado militar recebeu a bênção do movimento dos jovens Tamarrod, da Igreja Copta e das formações leigas liberais. O liberalismo reivindicado por estas últimas não incluía explicitamente a defesa do pluralismo político, o qual se mostra incompatível com a exclusão da Irmandade Muçulmana. Desde então, o pluralismo podia desaparecer totalmente. A censura imposta pelo novo regime militar revelou-se mais implacável que aquela que reinava sob a presidência de Hosni Mubarak. Não somente a Irmandade Muçulmana foi riscada do mapa com uma brutalidade inédita desde a era do presidente Gamal Abdel Nasser, como seu banimento foi acompanhado de uma campanha nacionalista e xenófoba que associava seus militantes à imagem de inimigos públicos a serviço do estrangeiro. Consequência inesperada da revolução egípcia, uma presidência autocrática transformou-se em uma ditadura militar que recorre à lei marcial e à violência legal. As eleições não foram suprimidas, mas se desenvolvem sob um controle estrito.
Por causa da proibição da Irmandade Muçulmana e da atomização de todas as forças políticas do país, o Exército se impôs naturalmente. Ele não vai deixar o poder por iniciativa própria, pelo menos enquanto contar com a cumplicidade das potências ocidentais e dos países do Golfo, e enquanto se considerar o suporte da sociedade.
O Egito não é presa das tensões étnicas e religiosas que minam alguns de seus vizinhos; a hipótese de um conflito aberto parece, portanto, descartada. Não é menos verdade que os militares não podem se contentar em restaurar a antiga ordem. O custo de uma repressão maciça tornou-se politicamente exorbitante, e os egípcios tomaram gosto pela força das mobilizações de massa. O fosso entre o islamismo e o poder secular também se arrisca a crescer mais. Alguns membros da Irmandade Muçulmana poderiam ser tentados a pegar em armas.
Mas a principal novidade é a exigência cada vez maior, no seio da população, de uma prestação de contas. Mesmo quando do golpe de Estado de julho de 2013, os militares tiveram de justificar sua ação, depois que uma iniciativa democrática organizada por grupos de cidadãos exprimiu alto e bom som suas inquietudes. O regime está agora diante de uma escolha delicada: ele vai ressuscitar o sistema de Mubarak, com um general Al-Sissi passando do kaki para o terno e gravata, ou vai preferir o modelo argelino, em que os civis têm sua chance de se expressar, mas deixam aos militares o direito de veto sobre temas importantes?
Em comparação, a transição tunisiana pareceria quase um caminho fácil de percorrer. Conduzida por atores locais aparentemente desejosos por estabilidade e pelo respeito às regras democráticas, ela foi em grande parte poupada pelas manipulações externas. Isso se explica sobretudo por sua geografia: ainda que vigiada de perto pela ex-potência colonial francesa, a Tunísia raramente serviu de teatro para as disputas geopolíticas dos interesses estrangeiros. Sua população é relativamente homogênea no plano religioso. O pomo da discórdia mais notável, desde a queda do presidente Zine al-Abidine ben Ali, é a luta fratricida à qual se dedicam os islâmicos e os leigos.
O partido Ennahda, de inspiração islâmica, ganhou as primeiras eleições livres, mas cometeu o mesmo erro da Irmandade Muçulmana: interpretou o mandato recebido como uma porta para o poder absoluto. Rapidamente a situação política se deteriorou, com o assassinato de vários opositores de esquerda e o aumento potencial dos grupos salafistas, violentamente hostis ao pluralismo eleitoral. Suas ameaças jogaram um jato de água fria na população, pouco habituada a um clima como esse.
Na Tunísia, nenhum setor pode pretender a hegemonia, e o Ennahda formou uma coalizão com dois partidos leigos. Os movimentos liberais e progressistas acabaram aceitando o diálogo nacional proposto pelo governo e trabalhando com os islâmicos – com exceção dos mais radicais, em especial os salafistas. Todos os partidos do tabuleiro eleitoral concordaram que o risco de uma espiral de violência política não poderia mais ser ignorado. Além disso, a divisão entre religiosos e leigos revelou-se menos insuperável que o previsto. Poucas coisas diferenciam afinal os islâmicos moderados de seus rivais leigos, já que estes últimos reconhecem com mais boa vontade a importância da religião em qualquer novo sistema político.
Mas foi sobretudo a turbulenta sociedade civil que reativou o calendário da transição democrática. A União Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT), a organização patronal União Tunisiana da Indústria, do Comércio e do Artesanato (Utica), a Ordem dos Advogados e a Liga Tunisiana dos Direitos do Homem tiveram voz durante o diálogo nacional. Elas fixaram novos objetivos para o governo e pediram a ratificação da Constituição.
Já o Exército tem um peso nitidamente menor que no Egito: pouco numeroso em efetivos e despolitizado, ele permanece nos quartéis desde 2011. O antigo regime de Ben Ali era um Estado policial, não uma ditadura militar. Seu governo tecnocrático e cleptomaníaco poderia muito bem dispensar uma base ideológica. É por isso que a revolução tunisiana aposentou as elites do antigo partido único, deixando intactas a burocracia e as forças de polícia, que não eram ideologicamente conectadas ao regime. A preservação dessa ossatura contribuiu para manter uma relativa estabilidade da ordem legal. Além disso, a antiga autocracia tinha montado uma robusta estrutura de instituições e leis, que certamente pouco havia servido durante os dez últimos anos da era Ben Ali, mas que pode hoje se mostrar útil para construir um sistema democrático funcional. Precisamente porque o nepotismo de outrora era desprovido de qualquer ideologia suscetível de reaparecer, a restauração de um Estado autoritário parece pouco verossímil.
A Tunísia tem a oportunidade de responder às suas incertezas por seus próprios meios, sem se preocupar com a boa vontade alheia. As potências mundiais e regionais desempenharam um papel negligenciável na transição em curso. Washington não colocou seu veto à entrada do Ennahda no governo nem favoreceu este ou aquele candidato. Os países petrolíferos do Golfo se abstiveram de afundar seus favoritos sob toneladas de dinheiro. A França se limita a uma neutralidade circunspecta, com sua imagem permanecendo maculada pelo indefectível apoio que deu a Ben Ali até o último segundo de seu reinado. Em caso de sucesso, a experiência tunisiana seria recebida como um sinal de esperança em toda a região, e talvez além dela.
Sujeitos transformados em cidadãos
Agora que a Primavera Árabe entra em seu quarto ano, é preciso atentar para uma busca de ingerências nos conflitos locais e uma ampliação de seus efeitos deletérios. As linhas de frente geopolíticas, religiosas e ideológicas abalam hoje todo o Oriente Médio. É apenas renunciando a se imiscuir nas revoluções que o mundo exterior pode ajudá-las a renascer.
É possível, no entanto, destacar algumas tendências mais precisas para o ano que se inicia. Para começar, as monarquias do Golfo se arriscam a se intrometer ainda mais nos assuntos de seus vizinhos árabes. A renda vinda do petróleo lhes permite comprar uma influência decisiva sobre países mais favorecidos como o Egito, o Marrocos e a Jordânia, onde suas ajudas ultrapassam as do bloco ocidental.
Em seguida, é preciso sublinhar a importância dos pactos concluídos em período de transição nacional. Em outros contextos de democratização, como a América Latina, os pactos de acomodação entre forças rivais foram profundamente institucionalizados e aceitos por todos. No Oriente Médio, em contrapartida, a lógica de divisão prevalece sobre a busca do compromisso, de sorte que as frações se debatem pelo poder em lugar de partilhá-lo.
Em terceiro lugar, a fraqueza das instituições locais, aliada às intervenções mal pensadas de potências estrangeiras, forneceu munição aos sabotadores do processo democrático. Os salafistas tunisianos e os falsos liberais egípcios são personagens de segundo plano que não têm nada a perder ao quebrar compromissos negociados com dificuldade. Eles ganham em importância à medida que as instituições vão se erodindo e que os interesses em jogo crescem. Tais fenômenos são com frequência a marca de países em falência que não têm os meios de deter o círculo vicioso do dilema securitário. No Iêmen e no Líbano, vários grupos preferem pegar em armas a recorrer a um Estado incapaz de protegê-los, meio pelo qual o enfraquecem um pouco mais.
O último ponto, mais positivo, tem a ver com a cidadania. Os povos árabes não se percebem mais como massas de pessoas, mas como forças cidadãs que merecem o respeito e a palavra. Se uma nova sublevação surgisse algum dia, ela seria sem dúvida ao mesmo tempo mais espontânea, mais explosiva e mais duradoura. Os cidadãos árabes foram testemunha das soluções extremas às quais seus governos estão prestes a recorrer para se manter no poder. Os regimes coercitivos também conhecem bem a determinação das massas em “se livrar deles”. A Primavera Árabe não deu ainda sua última palavra.
Hicham Ben Abdallah El Alaoui é primo do rei do Marrocos, Mohammed VI, e pesquisador visitante do Center on Democracy, Development en the Rule of Laz, da Universidade de Stanford, Estados Unidos.

Ilustração: Mariana Zanetti

1  Edward Luttwak, “In Syria, America loses if either side wins” [Na Síria, os Estados Unidos perdem seja qual for o lado vencedor], The New York Times, 24 ago. 2013.
2 Seus seis membros são Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Omã.
3 Instituição principal do islamismo sunita com sede no Cairo.

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