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domingo, 4 de dezembro de 2016

Carta Capital - Islã e terrorismo


por José Antonio Lima — publicado 30/11/2015 04h44, última modificação 01/12/2015 12h26 
 
As críticas à religião precisam ser acompanhadas de uma reflexão sobre o ambiente em que ela está inserida

Remy Gabalda / AFP
Muçulmano em Toulouse
Homem carrega cartaz com a inscrição "terrorista não é muçulmano" durante marcha a favor da paz que reuniu 10 mil pessoas em Toulouse, na França, em 21 de novembro


Os atentados terroristas em Paris serviram de estopim para uma nova onda de discurso de ódio direcionado ao islã. Na França, a desconfiança e a hostilidade aos muçulmanos se solidificam, enquanto nos Estados Unidos a islamofobia ganha legitimidade no debate político e, até no Brasil, muçulmanos são alvos de agressões físicas. Tais manifestações mostram que a intolerância caminha de mãos dadas com a ignorância.
Há alguns anos, o mundo se acostumou a relacionar o mundo muçulmano com violência e terrorismo. Ainda que essa percepção seja desproporcionalmente criada, é preciso reconhecer que há relação entre o terror islâmico e o islã. Os integrantes do Estado Islâmico (como os da Al-Qaeda e de outros grupos jihadistas) têm motivações religiosas, agem em nome do islã e acreditam estar representando seu credo, ainda que sua visão de mundo seja amplamente rejeitada no mundo árabe-muçulmano.
Para contrapor a islamofobia, boa intenção de quem costuma negar a conexão entre o terrorismo e a religião, mais útil é examinar a relação entre o islã e o terror praticado em seu nome.
Como as outras religiões, o islã tem escrituras vastas e contraditórias. Há no Corão e nos Hadith (o corpo de relatos sobre a vida de Maomé) justificativas para a violência e a perseguição religiosa, mas também argumentos a favor da paz e da tolerância. O mesmo ocorre no Velho Testamento, que aprova o genocídio e a morte de inocentes, entre outras barbaridades, e no Novo Testamento, no qual Jesus Cristo recomenda a morte de quem recusa seu reinado.
No judaísmo e no cristianismo, prevalecem leituras interpretativas e alegóricas dos textos sagrados, mas o mundo muçulmano está coalhado de literalismo e radicalismo. Por quê? A explicação está menos na religião e mais na história e na política.
Historicamente, o Oriente Médio é uma região dominada por potências estrangeiras. A luta contra o arbítrio externo teve diversas formas, mas ao longo do século 20 o islã político galvanizou-se como uma das mais atrativas e, às vezes, a única possível, tendo em vista o autoritarismo dominante na região. Este movimento político-religioso passou por metamorfoses ao longo dos anos e produziu uma ala violenta, que prospera sob a bandeira do jihadismo.
Em parte, o apelo da "guerra santa" persevera porque é partilhado pela leitura intolerante do islã professada e exportada pela Arábia Saudita – o salafismo, ou, na versão local, wahabismo. Também contribui para a força do jihadismo o fato de ele ter um significativo público passível de ser conquistado, seja na Europa, onde a ideologia é capaz de suprir a desilusão de jovens alienados, ou no Oriente Médio, onde é vista por alguns como uma alternativa crível para a falta de perspectivas imposta pelos Estados fracassados da região.
Acrescente-se a isso o fato de o islã, que serve de pano de fundo civilizacional para muitos no Oriente Médio, ser objeto de uma recorrente manipulação pelas ditaduras da região, inclusive as ditas laicas. Exemplos abundam.
O artigo 2 da Constituição do Egito, que prevê a sharia (lei islâmica) como "fonte primária de legislação" e sobrevive até hoje, foi colocado ali em 1971 por Anwar al-Sadat, ditador militar que usou o islamismo para contrapor o socialismo do período anterior.
Saddam Hussein, do partido pan-arabista Baath, buscou o apoio de religiosos nos anos 1990 com a Campanha da Fé, na qual instituiu mutilações e decapitações como sentença de crimes e a repressão ao consumo de álcool. Atualmente, o ditador do Egito, Abdel Fattah al-Sissi, um militar reformado, persegue a comunidade LGBT no Egito abrindo processos com base no "desprezo à religião" e em violações da "moralidade pública".
Um dos resultados desta manipulação é uma radicalização ainda maior da sociedade e da religião como um todo. No caso do Iraque de Saddam Hussein, sua Campanha da Fé ocasionou a islamização de diversos integrantes do Baath e do Exército, alguns dos quais fazem parte, hoje, do Estado Islâmico. Como consequência, fecham-se os espaços para o dissenso teológico a respeito do islã. Em grande medida, os jihadistas têm um espaço público sem oposição, e muitas vezes favorável, para escolher as escrituras que mais se adaptam a seus planos totalitários, e geralmente preferem as mais sanguinárias.
Mesquita Baitul Futuh
Cartaz na fachada da mesquita Baitul Futuh, na região metropolitana de Londres, pede orações às vítimas do terror em Paris
Logo após um atentado terrorista, é comum ouvir o clamor para que o islã passe por uma "reforma", nos moldes da que ocorreu com o cristianismo. As religiões, entretanto, não são análogas. Enquanto Jesus Cristo recomendou dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus, o Corão traz embutido em si não só os ditames de uma religião, mas um sistema econômico, jurídico e político.
Um debate aberto que possa discutir a relação do islã com a democracia e o Estado contemporâneo, abrir diálogo sobre conceitos como sharia e jihad e resgatar a herança de pluralismo e tolerância é não só desejável como necessário.
Esta tarefa cabe, é óbvio, apenas e tão somente aos muçulmanos. Deve-se lembrar, no entanto, que cada religião é afetada de maneiras diversas pela história e por eventos geopolíticos. No caso do Oriente Médio, o islã está inserido em um ambiente marcadamente caótico.
Na semana passada, a Nahdlatul Ulama, organização religiosa com milhões de adeptos na Indonésia, o maior país muçulmano do mundo e uma democracia em desenvolvimento, lançou uma campanha mundial para contrapor o jihadismo e o Estado Islâmico. Faz parte da iniciativa um filme de uma hora e meia no qual clérigos indonésios criticam e classificam de perversas as interpretações do Corão e dos Hadith feitas pelo Estado Islâmico.
Iniciativas como essas podem surgir no Oriente Médio. De fato, diversas organizações e clérigos condenaram abertamente o Estado Islâmico. Cabe uma questão, entretanto. Como um projeto desses ganharia tração e geraria resultados se os regimes locais, apoiados pelas grandes potências mundiais, fortalecem e estimulam o extremismo para se sustentar no poder? Sem responder a essa pergunta, não é possível discutir os rumos do islã no Oriente Médio.
http://www.cartacapital.com.br/internacional/isla-e-terrorismo-8313.html 

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