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quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

O FIO E A DÚVIDA Entre o Alvará e o Inventário

O FIO E A DÚVIDA
Entre o Alvará e o Inventário

LIBBY, Douglas C. "Notas sobre a produção têxtil brasileira no final do século XVIII: novas evidências de Minas Gerais. Estudos Econômicos, São Paulo, V. 27 nº 1, pág. 97-125, Janeiro-Abril de 1997.


O autor contextualiza seu período objeto, no final do XVIII, pari passu ao Renascimento Agrícola do período e uma provável expansão da produção têxtil doméstica, assemelhando-se ao que ocorreu na proto-industrialização européia. Porém ele ressalta que dado o caráter regional da fonte, seria temerário extrapolar para um fenômeno geral.
O ponto de partida foi o Alvará de 1785, que visava neutralizar um eventual crescimento da produção colonial, passível de gerar uma autonomia produtiva e de mercado frente à metrópole. Aparentemente desconheciam que os próprios e índios fiavam e teciam, e que esta cultura, portanto já se achava consolidada. O crescimento da população cabocla poderia estar reproduzindo, de forma ampliada, algo que já pré existia.
Ainda sobre o dito Alvará, cabem duas interpretações – segundo o autor: exemplo da exploração reinól ou uma medida exagerada quando apenas 13 teares foram apreendidos – um problema que na prática inexistia.
Mas qual era a dimensão desta indústria doméstica na década de 1780? Quem eram seus agentes, sua organização e produtividade? A estas indagações é que ele se propõe a responder.
Na literatura consolidada, os indícios parecem apontar para a nulidade dos efeitos. A produção de fios e panos era de forma generalizada os classificados como grosseiros, e em conseqüência, imunes aos efeitos do Alvará de 1785. Ainda neste viés, a mesma literatura destaca que após 1808, com a Abertura dos Portos, teria provocado a ruína desta indústria doméstica em virtude da concorrência inglesa.
No segundo capítulo do texto, A indústria têxtil doméstica nos relatos dos viajantes, o tema em exposição é autoevidente.
A importância destes relatos é validada para suprir a lacuna documental de “... escassez ou inacessibilidade da documentação oficial” (p.99), mas as pesquisas tem revelado o potencial de fontes como testamentos, inventários e a descoberta de fontes “oficiais e semi-oficiais” (p.100) e uma visão crítica sobre os relatos e suas distorções, tais como eurocentrismo e racismo. Mas também cabe considerar que tais relatos “... se constituem tentativas sinceras de observar e compreender a realidade brasileira” (p.100).
Citando diversas fontes, Libby relaciona a existência de manufaturas têxteis e o mercado interno (Henry Coster), a importância da indústria têxtil para MG (John Luccock), volumes de produção de algodão e seus mercados (Spix e Martius), seguindo-se Saint-Hilaire, Maria Grahan, Kidder, Burton, etc. Em comum, a disseminação da indústria têxtil doméstica.
Na seção seguinte ele analisa os dados relativos ao Inventário de Teares Existentes na Capitania de Minas Gerais, documento de 1786 e destinado a verificar o cumprimento do Alvará de 1785. Poucos teares foram apreendidos e vinculados à produção têxtil mais sofisticada, mas e os nºs oficiais? Suas conclusões são de 1997.
Dada a disseminação da produção os dados contidos no documento no entanto, só cobrem a metade de MG e nenhum outro local.
Visando proceder um recenseamento dos teares mineiros, o Inventário registrava sexo, estado civil, a quantidade de teares por domicílio, as vezes a origem racial dos envolvidos, as relações entre tecelões e proprietários – incluindo diferentes configurações de parentesco, escravaria, dependentes com ou sem relações de parentesco, etc.
Mas os dados não são uniformes. Quatro por cento não registraram o destino da produção e em pouco mais de ⅔ foram registrados a produção anual. O objetivo do Inventário parece ter sido a comercialização, embora a renda gerada tenha sido pouco freqüente (p. 106).
Outrossim, o documento é incompleto pois, apenas metade das vilas responderam, mas ainda assim, para o autor “..., os dados contidos no Inventário formam uma base que permite debruçar-se sobre uma indústria caseira colonial” (p. 106).
Em A Produção Têxtil em Minas Gerais em 1786 o autor vai destrinchando as informações da fonte.
Forma listados 1242 domicílios reunindo 1248 teares, distribuídos em mais de 63 distritos nas quatro vilas inventariadas, e que demonstram a disseminação da fiação e da tecelagem, configuradas aqui como algo comum.
Dentre as características mais comuns apresentavam-se:
a)predomínio do trabalho feminino;
b)consumo próprio domiciliar;
c)produção e comercialização irregulares (p. 107).
Tal quadro, sustentado em tabelas analisadas com bastante profundidade, ele conclui que o Alvará foi “... inócuo, pelo menos em Minas Gerais...”, já que 94,8% dos casos eram de tecidos classificados como “grosseiros”, portanto, fora do alcance das interdições do Alvará. Ainda que citando a existência de tecidos mesclados, linhos, lã e fustões (estes explicitamente proibidos), foram talvez aceitos diante da sua pequena produção, segundo o próprio autor aventa (p. 112).
O caráter incipiente da produção – evidenciado pelo predomínio dos pequenos produtores (74,8%), responsáveis por 48,6% da produção – e que se circunscrevia ao nível da subsistência.
Supondo que a origem do algodão era de colheita e produção próprias ainda assim era provável que, em virtude de variações de solo e clima, forçassem algum comércio inter- regional que os abasteciam total ou parcialmente. Quanto à renda gerada, os dados, embora escassos, apontaram:
a)a renda média era de 5$405 (cinco mil, quatrocentos e cinco réis);
b)a renda média para os homens era de 8$214;
c)para mulheres, 3$210;
d)para os que produziam o algodão e comercializavam o produto final a renda atingia 24$720;
e)comparando-se os domicílios que produziam com escravos e os que usavam indivíduos livres, a renda era respectivamente de 21$233 contra 3$542 – uma diferença de cerca de 7 vezes!
Comparativamente, a renda de camponeses e agricultores em 1798, segundo Alida Metcalf, era de 2$080. Já quando envolvia plantadores escravocratas que comercializavam açúcar e algodão, sua renda “saltava” para 110$890 (cento e dez mil oitocentos e noventa réis), mais de 5 vezes a renda mais alta encontrada em MG pelos dados do Inventário.
Em MG, ainda que não fosse possível enriquecer com a produção têxtil, ela seria uma atividade suplementar, o que explicava sua disseminação espacial (p. 119).
No item Conclusão ele volta a ressalvar que os dados são muito regionais para sustentar uma extrapolação, pois o que era MG não era necessariamente replicado no restante do Brasil.
Pelo Inventário vislumbra-se a dimensão desta indústria doméstica, a quantidade de teares, que cada um era apoiado por um contingente de tecelões e fiandeiros, residindo ou não nos locais de produção – multiplicando os domicílios envolvidos e dificultando sua quantificação exata.
Ele correlaciona que a produção algodoeira maranhense vinculava-se com o mercado paraense; que o tecido típico do sertanejo nordestino era o tecido caseiro – com uma indústria doméstica maior que Minas? -; que ainda que impactado pela abertura de 1808, a produção têxtil do RJ conseguiu manter-se devido as suas disseminação e generalização.
Além disso, o efeito pretendido pelo Alvará de 1785 foi muito amortecido simplesmente por direcionar-se não ao tipo de tecido mais comumente produzido. Também vale destacar que o uso do trabalho feminino representava uma força de trabalho subutilizada que era redirecionada em função das necessidades de subsistência ou novas oportunidades de trabalho, num quadro eu ainda merece ser explorado para constatar-se se era um fenômeno mineiro ou generalizável. Neste caso específico, longe de ser rotulado como segmento “marginal” era sim um segmento dotado de flexibilidade e com sua importância crescendo em função da recuperação econômica do final do XVIII, com sua diversificação econômica e ampliação do mercado interno (p.p 119/120).
Se na Europa a indústria têxtil doméstica agregava mão-de-obra que ia se associando à exportação (proto-industrialização), no Brasil, o predomínio prévio do setor exportador já comandava a maior parte da força de trabalho, agregando a mão-de-obra residual às oportunidades que surgissem na economia interna. Isso distinguia o que ocorria no Brasil do quadro europeu.
O quadro que se descortina em MG é o de uma indústria ainda em seus primórdios e com capacidade subutilizada: atividade temporária e correlata ao trabalho das roças (exceto para as situações onde a produção era voltada para a comercialização, onde sazonalidade e produtividade seriam mais estáveis). E que também se ressalve que a inclusão de cativos à produção não se enquadram estas unidades apenas como uma “produção de subsistência”, além de constituir-se ainda em outra variante em relação à Europa.

O autor lança luz sobre uma atividade que ainda carece de estudos mais profundos e amplos, mas ainda assim ele soma-se a estudos mais recentes que destacaram o “peso dos pequenos”, tais como nos estudos de João Fragoso, Manolo Florentino, etc. Por tais análises, aqui convergentes em alguma medida com algumas conclusões do autor, se destacam a participação do pequeno comerciante, do produtor eventual e do pequeno varejo em geral, que absorviam uma multidão de agentes eventuais e cobriam parte considerável do mercado.

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