Via Revista de História
Às toneladas
A descoberta do ouro alterou as relações econômicas na Colônia e enriqueceu a metrópole.
Angelo Alves Carrara
Mais do que um recurso natural. Mais do
que um artigo de exportação. O que se descobriu em Minas, depois de
dois séculos de colonização, foi fortuna em estado puro.Ao contrário do que ocorria com a produção de cana-de-açúcar no Nordeste, o metal extraído dos leitos dos rios mineiros não dependia da demanda internacional e suas oscilações de cotação: já vinha em forma de dinheiro, pronto para ser posto em circulação ali mesmo. O ouro em pó transformou-se imediatamente na principal moeda das Minas Gerais naquele final do século XVII. E era tão abundante que, embora quase sempre tivesse Portugal como destino, causou enorme impacto econômico e social também deste lado do Atlântico.
Uma verdadeira corrida pelo ouro tomou de assalto a capitania até então pouco habitada. Levas de gente chegavam de toda parte atrás do sonho da riqueza imediata, disputando as margens dos rios para montar seus arraiais, muitas vezes com violência. A ganância movia todos, e era preciso aproveitar antes que o Estado decidisse impor regras e restrições de acesso àquela fortuna natural.
Quase todo o ouro se encontrava em terrenos de aluvião – nas margens ou na foz dos rios, onde a erosão deposita cascalho, areia e argila. O sistema de extração era simples: ficava-se dentro dos ribeiros, com água até a cintura. Com uma bateia, lavavam-se as areias auríferas, até que os materiais mais leves ficassem na parte superior, de onde eram retirados. No fundo ficava o ouro, misturado a outros minerais. A época mais adequada para a atividade era o inverno, quando o nível da água dos rios estava mais baixo, o que permitia trabalhar melhor os leitos. O ouro assim extraído já vinha em pó ou em pepitas – não requeria, para se dissolver das rochas, o uso de mercúrio para formar amálgamas. Recém-retirado das bateias, podia ser usado como moeda.
Em 1710, por exemplo, apenas cinco pessoas foram responsáveis por 47,65% de todo o ouro produzido na Intendência do Rio das Mortes. Um século depois, quando o volume extraído já minguava, a desigualdade ainda era regra: os cinco maiores produtores conseguiram quase 82 quilos de ouro – uma média de 16 quilos para cada um –, enquanto os 568 menores ficaram com menos de 184 quilos – média de 347 gramas para cada um. O minucioso censo feito em 1814 mostra ainda que havia 5.747 garimpeiros atuando na região. Juntos, eles produziram cerca de 413 quilos, o que rendeu a cada um, em média, 71 gramas.
Embora importante para a economia colonial, era pequena a quantidade de pessoas envolvidas na mineração. A maior parte da população da capitania morava nos campos e vivia dos trabalhos agrícolas e pastoris. Enquanto isso, a extração de ouro, setor que gerava os mais valiosos rendimentos fiscais para a Coroa, mobilizava, no máximo, 5% dos moradores de Minas Gerais. E nem todos de modo exclusivo: muitos se dedicavam também à agricultura.
Mesmo assim, a disponibilidade de uma enorme quantidade de moeda, distribuída por um número de pessoas bem maior do que até então se vira, explica o impacto que a mineração tinha sobre a economia local. Sem exagero, pode-se afirmar que o ouro estimulou a produção de gêneros de muitos setores da economia brasileira daquele século, especialmente a agricultura e a pecuária voltadas para o abastecimento interno.
O maior desafio do governo era a cobrança do “quinto” – 20% devido à Coroa, calculado em cima de qualquer quantidade de metal ou pedra preciosa extraída na Colônia. Após várias tentativas de se encontrar o sistema mais eficaz de cobrança, chegou-se finalmente ao método adotado a partir de 1751: foram instaladas quatro casas de fundição, nas sedes das quatro comarcas de Minas: Vila Rica, Rio das Mortes, Serro Frio e Sabará. Ficou, então, proibida a circulação do ouro em pó: nas casas de fundição, o metal ganhava a forma de barras e o carimbo real, com o devido desconto do quinto. A nova ordem também tabelou o preço do ouro. Ao entrar, em pó, nas casas de fundição, ele valia 1.200 réis a oitava (até então, costumava ser negociado por 1.500 réis). Ao sair, já “quintado”, seu valor era de 1.500 réis a oitava.
Essa diferença gerava uma situação curiosa, detectada pelo barão Wilhelm Ludwig von Eschwege (1777-1855): a revolta contra o pagamento do quinto era atenuada. Eschwege veio ao Brasil em 1810, a convite do príncipe regente D. João VI, para compreender as causas do declínio da produção de ouro. Sabia-se que a cobrança do quinto gerava insatisfação entre os mineradores, que o qualificavam de “exorbitante”. Para surpresa do barão, no entanto, os produtores tinham a impressão de que seu prejuízo não era tão grande, justamente por causa da cotação mais alta da oitava quintada. A lógica era a seguinte: cinco oitavas de ouro em pó valiam 6 mil réis (1.200 x 5). Depois de fundidas, o proprietário recebia uma barra com apenas quatro oitavas, já que a quinta parte era deixada como pagamento do direito régio. Mas ele possuía os mesmos 6 mil réis, pois cada oitava em barra valia 1.500 réis (1.500 x 4 = 6 mil). Claro que melhor seria não pagar imposto algum, mas ao quinto “não podia resistir nenhum homem honesto”, argumentavam, segundo Eschwege.
Mas, afinal, será possível estimar a quantidade de ouro enviada para Portugal desde o descobrimento do metal até o encerramento das extrações? Graças aos estudos das últimas décadas, é possível, sim. Com base em relatórios de cônsules franceses em Lisboa, nos anos 1970 o historiador Virgílio Noya Pinto calculou a quantidade de ouro desembarcado em Lisboa somente de navios vindos do Brasil: foram mais de 529 toneladas entre 1697 e 1760. Já o pesquisador francês Michel Morineau, a partir de informações de gazetas holandesas, chegou a um total não muito diferente: cerca de 566 toneladas.
Recentemente, as estatísticas sobre a produção de ouro no Brasil ganharam uma nova fonte: os “manifestos do 1% do ouro” na Casa da Moeda de Lisboa, cujos dados foram arduamente levantados pela historiadora portuguesa Rita de Sousa Martins, da Universidade Técnica de Lisboa (veja artigo na página 22). Os manifestos registram, para o período entre 1753 e 1801, um total de 279.838,29 quilos de ouro na Casa da Moeda de Lisboa. Aproximadamente 94% dessas quase 280 toneladas vinham de Minas Gerais (o restante, de Goiás, Mato Grosso e Bahia). No século XIX, a produção já minguava: entre 1801 e 1807, não passou de 14,5 toneladas, e dali em diante só fez decair.
Arrendondando essas diferentes contas, pode-se afirmar que em todo o século XVIII o Brasil mandou para Portugal cerca de 800 toneladas de ouro. Imagine uma manada de cem elefantes de ouro maciço. Foi isso. Sem contar o que circulou de forma ilegal e o que ficou na Colônia, ornando suntuosas igrejas.
O amarelo da bandeira faz jus à nossa História.
ANGELO CARRARA é professor de História da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Minas e currais: produção rural e mercado interno de Minas Gerais, 1674-1807. (Editora da UFJF, 2007).
Saiba Mais:
ESCHWEGE, Wilhelm von. Pluto brasiliensis. Belo Horizonte: Itatiaia, 1979.
PINTO, Virgílio Noya. O ouro brasileiro e o comércio anglo-português. São Paulo: Nacional, 1979.
VASCONCELOS, Diogo Pereira R de. Breve descrição geográfica, física e política da capitania de Minas Gerais. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/as-toneladas
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