Hoje, o embate
político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os Estados
Unidos, a maior potência do mundo; a crescente presença chinesa, com suas
investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao suprimento de alimentos
e de suas exportações de manufaturas; e as políticas dos países do Mercosul,
que ainda entretém aspirações de desenvolvimento soberano, pretendem atingir
níveis de desenvolvimento social elevado e que sabem que, para alcançar estes
objetivos, a ação do Estado, é indispensável.
1. Todo o
noticiário sobre Mercosul, Aliança do Pacífico, Parceria Transpacífica e China
tem a ver com um embate ideológico entre duas concepções de política de
desenvolvimento econômico e social.
2. A primeira
dessas concepções afirma que o principal obstáculo ao crescimento e ao
desenvolvimento é a ação do Estado na economia.
3. A ação direta
do Estado na economia, através de empresas estatais, como a Petrobrás, ou
indireta, através de políticas tributárias e creditícias para estimular
empresas consideradas estratégicas, como a ação de financiamento do BNDES,
distorceria as forças de mercado e prejudicaria a alocação eficiente de
recursos.
4. Nesta visão
privatista e individualista, uma política de eliminação dos obstáculos ao
comércio e à circulação de capitais; de não discriminação entre empresas
nacionais e estrangeiras; de eliminação de reservas de mercado; de mínima
regulamentação da atividade empresarial, inclusive financeira; e de privatização
de empresas estatais conduziria a uma eficiente divisão internacional do
trabalho em que todas as sociedades participariam de forma equânime e
atingiriam os mais elevados níveis de crescimento e desenvolvimento.
5. Esta visão da
economia se fundamenta em premissas equivocadas. Primeiro, de que todos os
Estados partem de um mesmo nível de desenvolvimento, de que não há Estados mais
e menos desenvolvidos. Segundo, de que as empresas são todas iguais ou pelo
menos muito semelhantes em dimensão de produção, de capacidade financeira e
tecnológica e de que não são capazes de influir sobre os preços. Terceiro, de
que há plena liberdade de movimento da mão de obra entre os Estados. Quarto, de
que há pleno acesso à tecnologia que pode ser adquirida livremente no mercado.
Quinto, de que todos os Estados, inclusive aqueles mais desenvolvidos, seguem
hoje e teriam seguido passado esse tipo de políticas.
6. Como é obvio,
estas premissas não correspondem nem à realidade da economia mundial, que é
muito, muito mais complexa, nem ao desenvolvimento histórico do capitalismo.
7.
Historicamente, as nações hoje altamente desenvolvidas utilizaram uma gama de
instrumentos de política econômica que permitiram o fortalecimento de suas
empresas, de suas economias e de seus Estados nacionais. Isto ocorreu mesmo na
Inglaterra, que foi a nação líder do desenvolvimento capitalista industrial,
com a Lei de Navegação, que obrigava o transporte em navios ingleses de todo o
seu comércio de importação e exportação; com a política de restrição às
exportações de lã em bruto e às importações de tecidos de lã; com as restrições
à exportação de máquinas e à imigração de “técnicos”.
8. Políticas
semelhantes utilizaram a França, a Alemanha, os Estados Unidos e o Japão.
Países que não o fizeram naquela época, tais como Portugal e Espanha, não se
desenvolveram industrialmente e, portanto, não se desenvolveram.
9. Se assim foi
historicamente, a realidade da economia atual é a de mercados financeiros e
industriais oligopolizados em nível global por megaempresas multinacionais,
cujas sedes se encontram nos países altamente desenvolvidos. A lista das
maiores empresas do mundo, publicada pela revista Forbes, apresenta dados sobre
essas empresas cujo faturamento é superior ao PIB de muitos países. Das 500
maiores empresas, 400 se encontram operando na China. Os países altamente
desenvolvidos protegem da competição estrangeira setores de sua economia como a
agricultura e outros de alta tecnologia. Através de seus gigantescos orçamentos
de defesa, todos, inclusive a Alemanha e o Japão, que não poderiam legalmente
ter forças armadas, subsidiam as suas empresas e estimulam o desenvolvimento
cientifico e tecnológico. Com os programas do tipo “Buy American” e outros
semelhantes, privilegiam as empresas nacionais de seus países; através da
legislação e de acordos cada vez mais restritivos de proteção à propriedade
intelectual, dificultam e até impedem a difusão do conhecimento tecnológico.
Através de agressivas políticas de “abertura de mercados” obtém acesso aos
recursos naturais (petróleo, minérios etc) e aos mercados dos países
periféricos, em troca de uma falsa reciprocidade, e conseguem garantir para
suas megaempresas um tratamento privilegiado em relação às empresas locais,
inclusive no campo jurídico, com os acordos de proteção e promoção de
investimentos, pelos quais obtém a extraterritorialidade. Como é sabido,
protegem seus mercados de trabalho através de todo tipo de restrição à
imigração, favorecendo, porém, a de pessoal altamente qualificado, atraindo cientistas
e engenheiros, colhendo as melhores “flores” dos jardins periféricos.
10. A segunda
concepção de desenvolvimento econômico e social afirma que, dada a realidade da
economia mundial e de sua dinâmica, e a realidade das economias
subdesenvolvidas, é essencial a ação do Estado para superar os três desafios
que tem de enfrentar os países periféricos, ex-colônias, algumas mais outras
menos recentes, mas todas vítimas da exploração colonial direta ou indireta.
Esses desafios são a redução das disparidades sociais, a eliminação das
vulnerabilidades externas e o pleno desenvolvimento de seu potencial de
recursos naturais, de sua mão de obra e de seu capital.
11. As extremas
disparidades sociais, as graves vulnerabilidades externas, o potencial não
desenvolvido caracterizam o Brasil, mas também todas as economias
sul-americanas. A superação desses desafios não poderá ocorrer sem a ação do
Estado, pela simples aplicação ingênua dos princípios do neoliberalismo, de
liberdade absoluta para as empresas as quais, aliás, levaram o mundo à maior
crise econômica e social de sua História: a crise de 2007. E agora, Estados
europeus, pela política de austeridade (naturalmente, não para os bancos) que
ressuscita o neoliberalismo, atacam vigorosamente a legislação social, propagam
o desemprego e agravam as disparidades de renda e de riqueza. Mas isto é tema
para outro artigo.
12. Assim, neste
embate entre duas visões, concepções, de política econômica, a aplicação da
primeira política, a do neoliberalismo, levou à ampliação da diferença de renda
entre os países da América do Sul e os países altamente desenvolvidos nos
últimos vinte anos até a crise de 2007. Por outro lado, é a aplicação de
políticas econômicas semelhantes, que preveem explicitamente a ação do Estado, que
permitiu à China crescer à taxa média de 10% a/a desde 1979 e que farão que a
China venha a ultrapassar os EUA até 2020. Ainda assim, há aqueles que na
periferia não querem ver, por interesse ou ideologia, a verdadeira natureza da
economia internacional e a necessidade da ação do Estado para promover o
desenvolvimento. Nesta economia internacional real, e não mitológica, é preciso
considerar a ação da maior Potência.
13. A política
econômica externa dos Estados Unidos, a partir do momento em que o país se
tornou a principal potência industrial do mundo no final do século XIX e em
especial a partir de 1945, com a vitória na Segunda Guerra Mundial, e confiante
na enorme superioridade de suas empresas, tem tido como principal objetivo
liberalizar o comércio internacional de bens e promover a livre circulação de
capitais, de investimento ou financeiro, através de acordos multilaterais como
o GATT, mais tarde OMC, e o FMI; de acordos regionais, como era a proposta da
ALCA e de acordos bilaterais, como são os tratados de livre comércio com a
Colômbia, o Chile, o Peru, a América Central e com outros países como a Coreia
do Sul. E agora as negociações, altamente reservadas, da chamada Trans-Pacific
Partnership - TPP, a Parceria Transpacífica, iniciativa americana extremamente
ambiciosa, que envolve a Austrália, Brunei, Chile, Malásia, Nova Zelândia,
Peru, Singapura, Vietnã, e eventualmente Canadá, México e Japão, e que, nas
palavras de Bernard Gordon, Professor Emérito de Ciência Política, da
Universidade de New Hampshire, “adicionaria bilhões de dólares à economia
americana e consolidaria o compromisso político, financeiro e militar dos
Estados Unidos no Pacifico por décadas”. O compromisso, a presença, a
influência dos Estados Unidos no Pacifico isto é, na Ásia, no contexto de sua
disputa com a China. A TPP merece um artigo à parte.
14. Através
daqueles acordos bilaterais, procuram os EUA consagrar juridicamente a abertura
de mercados e obter o compromisso dos países de não utilizar políticas de
desenvolvimento industrial e de proteção do capital nacional. Não desejam os
Estados Unidos ver o desenvolvimento de economias nacionais, com fortes
empresas, capazes de competir com as megaempresas americanas, por razões
óbvias, entre elas a consequente redução das remessas de lucros das regiões
periféricas para a economia americana. Os lucros no exterior são cerca de 20%
do total anual dos lucros das empresas americanas!
15. Nas
Américas, a política econômica dos Estados Unidos teve sempre como objetivo a
formação de uma área continental integrada à economia americana e liderada
pelos Estados Unidos que, inclusive, contribuísse para o alinhamento político
de cada Estado da região com a política externa americana em seus eventuais
embates com outros centros de poder, como a União Europeia, a Rússia e hoje a
China.
16. Assim, já no
século XIX, em 1889 , no mesmo ano em que Deodoro da Fonseca proclamou a
República, na Conferência Internacional Americana, em Washington, os Estados
Unidos propuseram a criação de uma união aduaneira continental. Esta proposta,
que recebeu acolhida favorável do Brasil, no entusiasmo pan-americano da
recém-nascida república, foi rejeitada pela Argentina e outros países.
17. Com a I
Guerra Mundial, a Grande Depressão, a ascensão do nazismo e a Segunda Guerra
Mundial, os Estados Unidos procuraram estreitar seus laços econômicos com a
América Latina, aproveitando, inclusive, a derrota alemã e o retraimento
francês e inglês, influências históricas tradicionais.
18. Em 1948, na
IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, propuseram novamente a
negociação de uma área de livre comércio nas Américas; mais tarde, em 1988,
negociaram o acordo de livre comércio com o Canadá, que seria transformado em
Nafta com a inclusão do México, em 1994; e propuseram a negociação de uma Área
de Livre Comércio das Américas, a ALCA, em 1994.
19. A negociação
da ALCA fracassou em parte pela oposição do Brasil e da Argentina, a partir da
eleição de Lula, em 2002 e de Kirchner, em 2003 e, em parte, devido à recusa
americana de negociar os temas de agricultura e de defesa comercial, o que
permitiu enviar os temas de propriedade intelectual, compras governamentais e
investimentos para a esfera da OMC, o que esvaziou as negociações.
20. O objetivo
estratégico americano, todavia, passou a ser executado, agora com redobrada
ênfase, através da negociação de tratados bilaterais de livre comércio, que
concluíram com o Chile, a Colômbia, o Peru, a América Central e República
Dominicana, só não conseguindo o mesmo com o Equador e a Venezuela devido à
eleição de Rafael Correa e de Hugo Chávez e à resistência do Mercosul às
investidas feitas junto ao Uruguai.
21. Assim, a
estratégia americana tem tido como resultado, senão como objetivo expresso,
impedir a integração da América do Sul e desintegrar o Mercosul através da
negociação de acordos bilaterais, incorporando Estado por Estado na área
econômica americana, sem barreiras às exportações e capitais americanos e com a
consolidação legal de políticas econômicas internas, em cada país, nas áreas de
propriedade intelectual, compras governamentais, defesa comercial,
investimentos, em geral com dispositivos chamados de OMC – Plus, mais
favoráveis aos Estados Unidos do que aqueles que conseguiram incluir na OMC,
que, sob o manto de ilusória reciprocidade, beneficiam as megaempresas
americanas, em especial neste momento de crise e de início da competição sino americana na América Latina.
22. Na execução
deste objetivo, de alinhar econômica, e por consequência politicamente, toda a
América Latina sob a sua bandeira contam com o auxílio dos grupos internos de
interesse em cada país que, tendo apoiado a ALCA no passado, agora apoiam a
negociação de acordos bilaterais ou a aproximação com associações de países,
tais como a Aliança do Pacífico, que reúne países sul-americanos e mais o México,
que celebraram acordos de livre comércio com os EUA.
23. Hoje, o
embate político, econômico e ideológico na América do Sul se trava entre os
Estados Unidos da América, a maior potência econômica, política, militar,
tecnológica, cultural e de mídia do mundo; a crescente presença chinesa, com
suas investidas para garantir acesso a recursos naturais, ao suprimento de
alimentos e de suas exportações de manufaturas e que, para isto, procuram
seduzir os países da América do Sul e em especial do Mercosul com propostas de
acordos de livre comércio; e as políticas dos países do Mercosul, Argentina,
Brasil, Venezuela, Uruguai e Paraguai que ainda entretém aspirações de
desenvolvimento soberano, pretendem atingir níveis de desenvolvimento social
elevado e que sabem que, para alcançar estes objetivos, a ação do Estado, i.e.
da coletividade organizada, é essencial, é indispensável.
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