por Shervin Ahmadi
Estados Unidos e Irã têm uma longa história. Por um lado, o papel da CIA no golpe de Estado contra o governo nacionalista de Mohammad Mossadegh em 1953; por outro, a tomada de reféns na embaixada norte-americana em 1979: nos dois países, esses episódios ainda estão muito presentes na memória
coletiva. Contudo, Teerã parece querer virar a página e depositar, pela
primeira vez, sua confiança num governo norte-americano, o do presidente
Barack Obama. É uma decisão de consequências incalculáveis para a
política regional.
Longe de ser uma improvisação, essa medida foi preparada
cuidadosamente, o que se vê pelo modo como se organizou a última eleição
presidencial. Decidido a evitar qualquer risco de confronto entre seus
partidários, o regime afastou os candidatos mais controvertidos. O povo
percebeu a jogada e votou em massa naquele que defendia o fim do
conflito com os Estados Unidos. Eleito já no primeiro turno com quase
72% dos votos, o novo presidente Hassan Rohani estava em posição de
negociar, em igualdade de condições, com os norte-americanos.
Essa escolha não decorreu de uma visão romântica da administração Obama
e de suas intenções: Teerã sabe muito bem que o cenário internacional e
regional mudou e que os Estados Unidos já não podem lhe fazer guerra.
A hesitação do presidente
norte-americano em ordenar represálias militares contra a Síria e sua
adesão à proposta de um desmantelamento do arsenal químico de Bashar
al-Assad confirmaram a mudança na ordem regional. Embora o papel da
Rússia tenha sido enfatizado pela mídia ocidental,1 os
iranianos sempre afirmaram que eram os autores da proposta de destruição
do arsenal químico e que convenceram Damasco a aceitá-la. Seja como
for, a nova atitude norte-americana persuadiu a República Islâmica de
que agora devia recorrer à negociação, não à guerra, e dispor-se a ceder
em alguns pontos para normalizar as relações com Washington.
Os dois países têm interesses estratégicos comuns no Afeganistão e no
Iraque; ambos se inquietam igualmente com a marcha dos acontecimentos no
Paquistão. No entanto, mantêm alianças político-militares antagônicas. O
Irã apoia o Hezbollah libanês, a Síria e o Hamas palestino. Os Estados
Unidos são aliados das monarquias petroleiras do Golfo Pérsico e de
Israel; e ainda que essa região se torne um dia menos importante para
eles, não se concebe que tais vínculos venham a ser postos em questão.
No plano econômico, uma reaproximação poderia dar resultados rápidos,
como por exemplo o desbloqueio dos fundos iranianos congelados nos
Estados Unidos e a assinatura de contratos produtivos nos setores em que
o Irã tem necessidades urgentes, como a aviação. As empresas
norte-americanas têm todas as condições para conseguir esses contratos,
pois, apesar das sanções, sempre estiveram indiretamente presentes no
país. Outro trunfo: a considerável diáspora iraniana instalada nos
Estados Unidos, que nunca rompeu com a mãe-pátria. Os Estados Unidos
dispõem também de uma base cultural sólida no Irã, paradoxalmente o
único país da região – afora Israel – onde não se alimenta um sentimento
hostil contra eles.
Mas a reorientação da política externa iraniana não diz respeito
unicamente às relações com Washington. Longe disso. Teerã já definiu há
muito tempo seus eixos estratégicos, determinados não tanto pela
ideologia, mas sobretudo pelos interesses regionais e pela avaliação do
equilíbrio de forças.
Os avanços do regime iraniano no
cenário regional, durante os últimos dez anos, são impressionantes. Ele
atuou com muita habilidade e realismo nessa esfera, a segunda em
importância aos olhos dos dirigentes (depois da militar). Vários centros
de pesquisa especializados surgiram em torno do Conselho de
Discernimento do Interesse Superior do Regime e do Ministério das
Relações Exteriores. Desde 1997, o Centro de Pesquisas Estratégicas,
fundado em 1989 sob a tutela desse conselho, produz com regularidade
relatórios sobre as questões mais importantes,
endereçados aos dirigentes. Parte desses estudos é publicada no
periódico trimestral do centro, que já teve como diretor Rohani, o novo
presidente.2 Bem distantes do tom propagandístico oficial, as
análises aí desenvolvidas tratam da estratégia tradicional e a revista
não hesita em apelar para especialistas estrangeiros.
Crescente influência regional
O Irã manobra num ambiente complicado, dando mostras de grande
flexibilidade. Na frente leste, sua principal fonte de preocupação é o
Paquistão. O papel deste no Afeganistão, sua aliança com os Estados
Unidos, o refúgio que oferece aos muçulmanos mais radicais, sem falar em
sua bomba atômica, preocupam o Irã, tanto quanto a instabilidade
oriunda desses compromissos contraditórios. Evitando levantar a questão
do destino dos xiitas,3 Teerã espera estabilizar suas
relações com Islamabad jogando com sua dependência energética. O projeto
do “gasoduto da paz”, destinado de início a canalizar o gás do Irã para
a Índia através do território paquistanês, foi finalmente assinado em
março de 2013. Sob pressão norte-americana, a Índia recuou em 2005,4 mas o Irã sabe que as necessidades energéticas desse gigante econômico vão obrigá-lo, a médio prazo, a rever sua posição.
No Afeganistão, Teerã sempre manteve boas relações com o governo
instalado pelos Estados Unidos, que prefere aos talibãs. O intercâmbio
econômico teria sido multiplicado por oito nos últimos quatro anos,
chegando a US$ 5 bilhões. Ainda que esse número pareça exagerado, os
produtos iranianos invadiram o mercado afegão apesar das pressões dos
Estados Unidos, para quem Teerã estaria tentando, desse modo, contornar
as sanções que lhe foram impostas.5
No Iraque, a queda de Saddam Hussein desembaraçou o Irã de um de seus
piores inimigos, permitindo-lhe aumentar sua influência política nesse
país e na região. Esquecendo a guerra mais longa do século XX, os dois
países se tornaram parceiros econômicos e aliados políticos.
Durante o governo de Saddam, Teerã auxiliou vigorosamente a oposição
iraquiana – xiita, mas também curda. Após 2003, algumas facções
conservaram relações estreitas com os persas e lhes permitiram ampliar
sua influência no palco político iraquiano. O primeiro-ministro Nuri
al-Maliki é considerado muito próximo de Teerã, e o dirigente curdo
Jalal Talabani desempenhou papel importante na reaproximação entre os
Estados Unidos e o Irã. A primeira negociação oficial entre os dois
países, com vistas à estabilização do Iraque, foi organizada por sua
iniciativa em 2007.
A convivência com Ancara, outro
vizinho do oeste, parece mais delicada. As relações econômicas vêm se
intensificando há dez anos, com as trocas comerciais passando de US$ 2,1
bilhões em 2002 para US$ 21,3 bilhões em 2012.6
Depois das sanções norte-americanas, as empresas iranianas instaladas
nos Emirados Árabes Unidos, responsáveis por grande parte das
importações do país, se transferiram para a Turquia. Teerã vê Ancara
como importante parceiro estratégico e as ambições regionais comuns
podem aproximar os dois países, ainda que permaneçam divididos em
relação ao futuro da Síria. Mas, também nesse caso, embora o impasse se
prolongue, algumas aproximações são possíveis, como se viu pela visita a
Teerã, em 27 de novembro, do ministro das Relações Exteriores turco,
Ahmed Davutoglu.7
Uma guerra fria persiste entre o Irã e
sua vizinha do sul, a Arábia Saudita. Nos anos 1980, esse reino havia
apoiado o regime de Saddam na guerra contra o Irã; e em 1987, por
ocasião da peregrinação a Meca, a polícia abriu fogo contra os
peregrinos que se manifestavam contra os Estados Unidos e Israel,
matando mais de quatrocentos deles, entre os quais 250 iranianos. Mais
tarde, as relações se normalizaram sob a presidência de Hachemi
Rafsandjani (1989-1997) e Mohammad Khatami (1997-2005),
que visitaram várias vezes o reino saudita. Em 2003, a invasão
norte-americana do Iraque gerou novas tensões: Riad se inquietou com a
influência crescente do Irã e com a marginalização política dos sunitas.
A presidência de Mahmud Ahmadinejad (2005-2013), com suas posições
agressivas, nada fez para serenar os ânimos.
O Hezbollah atribuiu a Riad a responsabilidade pelo atentado contra a
embaixada do Irã em Beirute, em 19 de novembro, quando estavam a meio
caminho as negociações em Genebra sobre a questão nuclear. Também no
cenário libanês, os dois países se confrontam, a Arábia Saudita apoiando
o ex-primeiro-ministro Saad Hariri, além de grupos radicais sunitas às
vezes muito próximos da Al-Qaeda.
O degelo entre Teerã e Washington
complicou tudo. O Irã tentará estabelecer vínculos privilegiados com os
norte-americanos em certos assuntos, como a garantia da saída das forças
aliadas do Afeganistão ou a exploração dos campos petrolíferos do sul
do Iraque, o que pode enfraquecer a posição da Arábia Saudita. A guerra
fria entre Teerã e Riad vai, portanto, continuar.
Nas últimas semanas, o Irã lançou uma ofensiva para atrair outros
países do Golfo, enviando em dezembro Javda Zarif, o arquiteto do acordo
com os Estados Unidos, a Omã, ao Kuwait, ao Catar e aos Emirados Árabes
Unidos. Neste último, Zarif deu a entender que o Irã estava disposto a
rever em grande escala sua posição com relação ao problema das ilhas. As
três ilhas de Pequena Tomb, Grande Tomb e Abu Mussa foram anexadas pelo
Irã, ainda sob o xá, em 1968, mas são reivindicadas pelos Emirados
Árabes Unidos.
Tradicionalmente, as relações com o
Catar sempre foram muito boas. Doha não apoiou o Iraque na guerra contra
o Irã, como outros países do Golfo, e em 2006, quando era membro do
Conselho de Segurança da ONU, não votou a favor das sanções contra o
Irã. Todavia, o conflito sírio abriu um fosso entre os dois países, pois
a ajuda do Catar aos combatentes islâmicos não podia deixar Teerã
indiferente. Além disso, Doha acolheu o ex-vice-presidente iraquiano
Tarek al-Hachemi, perseguido pela justiça de seu país por ter
“financiado ataques terroristas”.
Em busca de parcerias
Para fazer face aos distúrbios do cenário internacional, o Irã procura
parceiros. Já membro observador da Organização de Cooperação de Xangai
(OCX), sonha integrar os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do
Sul), embora seu fraco peso econômico, fora do setor energético, seja
um empecilho. Os Brics, aliás, já expressaram por várias vezes sua
preocupação com as ameaças militares ao Irã.
Durante o governo de Ahmadinejad, o Irã investiu bastante na América
Latina. Dois presidentes, o venezuelano Hugo Chávez e o boliviano Evo
Morales, foram a Teerã; e as relações comerciais se ampliaram a tal
ponto que Hillary Clinton, então secretária de Estado, mostrou
publicamente sua inquietação com esses sucessos diplomáticos na América
Latina.8
Com a Europa, as relações flutuaram
desde a revolução de 1979. O assassinato em Berlim, em setembro de 1992,
de vários membros do Partido Democrático do Curdistão Iraniano (PDCI),
entre os quais seu secretário-geral, Sadegh Sharafkandi, provocou uma
ruptura do “diálogo crítico” entre a União Europeia e Teerã. Só com a
eleição de Khatami, em 1997, as relações foram retomadas. Depois, em
2003, quando a guerra no Iraque recomeçava, a Europa, representada pela
Alemanha, França e Reino Unido, entabulou negociações com o Irã sobre
seu programa nuclear. Teerã concordou com algumas concessões, por
exemplo, sobre o enriquecimento de urânio e a aplicação do protocolo
adicional do Tratado de Não Proliferação de armas nucleares; mas os
Estados Unidos, embriagados com sua “vitória fácil” no Iraque, deixaram
esse processo se perder. Em dezembro de 2006, a União Europeia votou a
Resolução n. 1.737 do Conselho de Segurança, impondo as primeiras
sanções da ONU ao Irã e adotando, de seu lado, medidas ainda mais
coercitivas. Em 2012, o Conselho Europeu determinou um embargo sobre as
exportações de petróleo iranianas e congelou os valores depositados no
Banco Central do Irã.
Apesar de tudo, alguns países europeus
continuaram a manter relações comerciais com o Irã. Sem dúvida, as
trocas diminuíram: em dois anos, as exportações iranianas para a Europa
caíram de 16,5 bilhões de euros para 5,6 bilhões de euros, e as
importações, de 10,5 bilhões de euros para 7,4 bilhões de euros.9
A British Petroleum tenta de todos os modos evitar sanções para poder
investir no projeto Chah Deniz 2. Londres desempenhou um papel
importante nas negociações que levaram a um acordo sobre a questão
nuclear. Desde a eleição de Rohani, a cadeia BBC Farsi, muito popular no
Irã, dá uma imagem positiva do país. Teerã procura fazer bom uso das
ambições regionais de Londres,10 enquanto Paris parece
totalmente desacreditada. Caso a retomada de relações com Washington se
confirme, as empresas europeias correm o risco de perder o posto
privilegiado que, há trinta anos, vêm conservando no mercado
iraniano...
Shervin Ahmadi
Jornalista responsável pela edição de Le Monde Diplomatique em farsiIlustração: Daniel Kondo
1 Ver Jacques Lévesque, “A Rússia voltou”, Le Monde Diplomatique Brasil, dez. 2013.
2 Ver .
3 Ver Christophe Jaffrelot, “Le Pakistan miné par les affrontements entre chiites et sunnites” [O Paquistão minado pelos enfrentamentos entre xiitas e sunitas], Le Monde Diplomatique, dez. 2013.
4 Michael T. Klare, “Oil, geopolitics, and the coming war with Iran” [Óleo, geopolítica e a guerra por vir com o Irã], 11 abr. 2005. Disponível em: .
5 Michel Makinsky, “Iran-Afghanistan, les dimensions économiques d’une interdépendance, ou commerce et investissements comme outils d’influence” [Irã-Afeganistão, as dimensões econômicas de uma interdependência, ou comércio e investimentos como ferramentas de influências]. In: “L’Afghanistan 2014: retrait ou retraite”, EurOrient, n.40, Paris, 2013.
6 Bijan Khajehpour, “Five trends in Iran-Turkey trade, energy ties” [Cinco tendências nos laços de energia e negócios entre Irã e Turquia], 31 out. 2013. Disponível em: .
7 Ver Ali Mohtadi, “As relações entre Irã e Síria à prova da mudança em Teerã”, Le Monde Diplomatique Brasil, out. 2013.
8 Les Échos, Paris, 4 maio 2009.
9 Ver .
10 Ver Jean-Claude Sergeant, “Londres réexamine sa relation avec Washington” [Londres reexamina sua relação com Washington], Le Monde Diplomatique, set. 2010.
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1573
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