por Hicham Ben Abdallah El Alaoui |
Em seus primórdios, a Primavera Árabe deitou por terra os preconceitos
ocidentais. Ela colocou em maus lençóis os clichês orientalistas sobre a
incapacidade congênita dos árabes de conceber um sistema democrático e
abalou a crença segundo a qual eles não mereceriam nada melhor do que
ser governados por déspotas. Três anos depois, as incertezas permanecem
intactas quanto ao desfecho do processo, que entra em sua quarta fase.
Na primeira etapa, concluída em 2011, teve início uma onda gigantesca
de reivindicações relativas à dignidade e à cidadania, alimentada por
protestos intensos e espontâneos. A etapa seguinte, em 2012, marcou um
momento em que as lutas se voltaram para si mesmas, para o contexto
local e para o ajustamento delas à herança histórica de cada país.
Simultaneamente, forças externas começaram a reorientar esses conflitos
para direções mais perigosas, levando os povos à situação que conhecem
hoje.
No ano passado, assistiu-se a uma terceira fase, marcada pela
internacionalização e pela ingerência cada vez mais agressiva das
potências regionais e ocidentais. O foco sobre as rivalidades entre
sunitas e xiitas se generalizou por todo o Oriente Médio, pressionando
cada Estado e cada sociedade a se polarizar sobre o eixo das identidades
religiosas. O antagonismo entre o islamismo e o secularismo se
cristalizou em grande escala. O perigo advém do fato de que as
rivalidades geopolíticas e as tensões religiosas se sobrepõem às
especificidades de cada país e parecem reduzir os atores locais a
simples fantoches nas mãos das potências estrangeiras.
A comparação entre a Síria, o Bahrein, o Egito e a Tunísia revela um
espectro multicor de influências internacionais. Nos dois primeiros
países, as intervenções externas, em particular as sauditas,
precipitaram a guerra civil e exaltaram as facções mais radicais dos
revoltosos. No Egito, o apoio ocidental à política autoritária do novo
regime esmagou as motivações democráticas iniciais. Apenas a Tunísia
parece engajada num caminho promissor, à medida que permanece
relativamente poupada dos confrontos geopolíticos, religiosos e
ideológicos que varreram a região.
Entretanto, em cada um desses países, a Primavera Árabe deixou a marca
indelével de uma mobilização popular na qual os cidadãos tomaram
consciência de sua força. Ela abriu espaços de contestação que o Estado
não pode mais fechar a não ser pagando o preço de uma repressão
politicamente dispendiosa. Seja qual for a incerteza do futuro, a
condução dos assuntos com mão de ferro que prevalecia anteriormente
desapareceu por completo.
Na Síria, a guerra nasceu de um movimento de desobediência civil
rapidamente transformado em levante popular de grande envergadura. A
reação brutal do regime aos primeiros alertas não conseguiu intimidar os
manifestantes, mas deflagrou um ciclo devastador de protestos e
repressão. Se o aparato militar do presidente Bashar al-Assad
rapidamente aniquilou a esperança de uma revolução pacífica, foram os
cálculos geopolíticos e as questões religiosas que nela se intrometeram
mais tarde que precipitaram a insurreição numa guerra civil abominável:
até hoje, 120 mil mortos, 2,5 milhões de refugiados e 4 milhões de
pessoas que tiveram de deixar seu lar.
Desde sempre, a Síria se caracterizou pela diversidade de suas
tradições religiosas e comunitárias. Ao explorar as tensões internas, as
potências externas detonaram esse frágil mosaico. O país se reveste de
uma importância capital em uma região onde se entrechocam os interesses
dos Estados Unidos, de Israel, da Arábia Saudita, do Catar, da Jordânia,
da Turquia e do Irã. A divisão ancestral dessa parte do mundo entre as
duas correntes rivais islâmicas, a sunita e a xiita, serviu de alavanca
para esses Estados desejosos de tentar ampliar sua influência.
O clã dos alauitas, que compõe o regime de Al-Assad, é considerado
parte de um arco xiita que se estende do Irã ao Líbano do Hezbollah, ao
passo que os grupos de rebeldes pertencem, na maioria, ao lado sunita.
Contudo, tais filiações recobrem um tabuleiro bem mais diversificado. De
modo muito semelhante aos afegãos mujahedinsda década de 1980,
a oposição síria se ressente gravemente de coesão. Seus representantes
no exterior conhecem mal ou ignoram por completo os grupos armados que
lutam no território. Estes vão buscar apoio em outra parte: ao norte do
país, eles contam em geral com a ajuda da Turquia e do Catar, enquanto
ao sul recebem armamento e assistência da Jordânia, da Arábia Saudita e
dos Estados Unidos.
Essas imbricações geopolíticas dão lugar a paradoxos que contradizem
uma leitura estritamente religiosa do conflito. Riad festejou o golpe de
Estado militar no Egito contra a Irmandade Muçulmana, que é,
entretanto, de mesma obediência que os grupos que ela arma no front
sírio. O recente degelo entre Washington e Teerã relativiza de igual
forma a visão simplista veiculada com frequência pelas mídias
internacionais: Israel e Arábia Saudita se julgam abandonados por
Washington perante Teerã e se veem repentinamente como aliados de fato.
A cisão entre forças não religiosas e islâmicas pesa igualmente. Se o
Exército Livre da Síria (ELS) reivindica sua origem secular, a maior
parte dos outros grupos compõe um mosaico religioso que vai dos
islâmicos moderados até os jihadistas ligados à Al-Qaeda, passando pelos
salafistas. Torna-se difícil, por conseguinte, avaliar em que medida as
facções mais radicais, como a Ahrar al-Cham e o Estado Islâmico do
Iraque e do Levante (EIIL), manifestam uma legítima convicção religiosa
ou utilizam sua bandeira para fins mais prosaicos. Por fim, tal
fragmentação, fonte de discórdias crescentes, abriu um segundo front
no próprio seio do campo rebelde, conforme demonstram os combates
mortais entre o ELS e o EIIL no norte da Síria, no início de janeiro.
Essa dispersão da guerra civil não é estranha à sobrevivência do regime
de Al-Assad.
O conflito sírio é muitas vezes apresentado em termos de uma mecânica
simples: quando o poder se enfraquece, a oposição se fortalece, e
vice-versa. É esquecer que dinheiro e armas não são tudo numa guerra e
que é preciso também um contingente humano. Nessas condições, a penúria
ameaça constantemente o regime de Damasco. O reforço dos exércitos
Al-Qods do Irã, das unidades do Hezbollah libanês e das milícias locais (chahibas)
é, assim, vital à preservação do poderio militar. Com o recurso às
armas químicas não sendo mais uma opção, o poder depende mais do que
nunca desses reforços externos.
A Irmandade Muçulmana desmistificada
A principal fonte de preocupação é a nova radicalização da oposição
síria e do regime. O Front Al-Nosra e o EIIL, que dizem pertencer à
Al-Qaeda, se beneficiam largamente da ajuda proveniente do Golfo. A
Arábia Saudita também conquistou sua ingerência sustentando grupos não
filiados ao movimento terrorista fundado por Osama bin Laden,
perturbando assim a relação de forças no cerne da oposição. Por sua vez,
o Exército regular da Síria sofreu profundas modificações. Desde a
batalha de Al-Qusayr, em abril de 2013, as brigadas Al-Qods e o
Hezbollah redefiniram o contingente em pequenas unidades móveis
organizadas como milícias.
Por todas essas razões, as potências estrangeiras pouco se preocupam em
fazer cessar o conflito. Os Estados Unidos não podem se permitir entrar
numa nova guerra e se acomodam ao ver sua hegemonia bater em retirada
no Oriente Médio. Desde então, sua estratégia consiste em privilegiar a
Ásia. Dentro da lógica conservadora norte-americana, Washington só tem a
ganhar com a deterioração da questão síria: conforme apontado por
Edward Luttwak no New York Times,1 a sabedoria
ordena que se deixe os combatentes se matar uns aos outros tanto quanto
possível, já que o triunfo de uma oposição dominada pelos islâmicos
seria tão nefasta aos interesses ocidentais quanto a vitória do clã de
Al-Assad. Já o aliado saudita veria com bons olhos o colapso do regime
de Damasco e poderia se contentar com um país fragmentado, à beira do
caos, que cortaria o eixo xiita que liga Líbano e Irã. Uma Síria
ingovernável também poderia contentar Teerã e Moscou, arriscando deixar
um membro da família Al-Assad reduzido ao papel de fantoche instalar-se
em seu palácio de Damasco, como o fez, por algum tempo, seu homólogo
afegão.
Uma paz a curto prazo parece, portanto, muito improvável. Se os autores
das atrocidades cometidas sobre o território devem responder por seus
atos, as potências estrangeiras que fomentam tais violências assumem uma
grande parcela de responsabilidade. A guerra civil tornou-se tão
assustadora que poucos ainda se recordam dos cortejos dos estágios
iniciais, quando o povo reclamava simplesmente o direito à dignidade e à
cidadania. Nesse quadro trágico, esse aspecto talvez seja o mais
triste.
No Bahrein também as potências estrangeiras demonstram sua aptidão para
exacerbar as tensões locais, porém de uma forma bem diferente da Síria.
As primeiras manifestações nessa pequena ilha do Golfo traduziam um
desejo de democracia amplamente compartilhado: estima-se que, no seu
auge, elas mobilizaram quase um quinto da população. Se a intervenção
militar do Conselho de Cooperação dos Estados Árabes do Golfo (CCG)2
rapidamente cortou no nascedouro tal aspiração coletiva, o fracasso do
movimento se explica também e talvez principalmente pela irrupção da
geopolítica e das palavras de ordem religiosas.
Enquanto na Síria um poder alauita enfrenta uma população
majoritariamente sunita, o Bahrein é uma monarquia sunita povoada
majoritariamente por xiitas. Daí por que os respectivos interesses das
duas potências rivais da região, o Irã e a Arábia Saudita, ali se
entrechocam violentamente. Em razão da proximidade geográfica, Riad
exerce sobre seu vizinho um direito de vigilância particularmente
intrusivo. Apoiada pelo Ocidente, a intervenção das tropas da CCG
respondia de forma explícita à intenção de Riad de manter o Bahrein
dentro de sua zona de influência.
A princípio, xiitas e sunitas marchavam lado a lado, sobre uma linha
única de reivindicação democrática. Foi somente quando os sauditas
wahabitas começaram a trabalhar no aspecto religioso que este, pouco a
pouco, rechaçou os objetivos políticos. Entretanto, essa captação da
dinâmica local por interesses externos colocou em destaque a fragilidade
do regime. Sem a injeção financeira, militar e política dos Estados do
Golfo, a dinastia Al-Khalifa não disporia dos meios nem da legitimidade
necessários para se manter no poder. Sua sobrevivência só depende agora
de seus protetores estrangeiros.
A internacionalização do conflito destruiu uma chance histórica de ver a
sociedade do Bahrein resolver suas velhas tensões religiosas pelo
diálogo democrático. Enquanto as mesmas causas desencadearam a explosão
da Síria, no Bahrein elas mantêm sob respiração artificial um regime
autocrático vergonhoso.
Diferentemente da Síria e do Bahrein, o Egito é um país forte e
autônomo o suficiente para enfrentar as pressões externas. As grandes
potências estrangeiras não estão menos intimamente ligadas ao drama
político que ali se encena. Em julho de 2013, um golpe de Estado militar
derrubou o governo depreciado, porém legítimo, da Irmandade Muçulmana.
Em qualquer outro lugar, uma ruptura tão brutal do processo democrático
teria provocado uma indignação mundial. No Egito, entretanto, ela obteve
a aprovação das chancelarias ocidentais. Os Estados Unidos e seus
aliados europeus, mas também a Arábia Saudita e seus vizinhos do Golfo,
assim como a Jordânia e Israel, acomodaram-se diante do golpe de força
militar, que os livrava de um Mohamed Morsi democraticamente eleito, mas
tido como incontrolável.
Tão logo o novo regime se estabeleceu, a Arábia Saudita, os Emirados
Árabes Unidos e o Kuwait se apressaram em lhe fornecer uma ajuda
econômica de US$ 12 bilhões, ou seja, nove vezes o US$ 1,3 bilhão anual
de assistência militar norte-americana. A escolha de Riad se explica
pelo menos por duas razões: de um lado, a desconfiança de longa data do
regime wahabita em relação à Irmandade Muçulmana; de outro, o medo de
que o exemplo da jovem democracia egípcia se transformasse num caldeirão
de óleo fervente e estimulasse seus próprios protagonistas a contestar o
reino do clã Saud.
O fato de o Ocidente ter dado sua bênção ao golpe de Estado militar não
aumentou seu prestígio no seio da população egípcia, escaldada pela
mensagem implícita segundo a qual uma democracia só é aceitável se
coloca no poder os candidatos investidos pelas potências estrangeiras. A
ironia da história é que, ao voltar as costas à Irmandade Muçulmana,
Washington e seus aliados sabotaram por sua própria conta o projeto
árabe-ocidental de um bloco sunita coerente suscetível de conter a
influência iraniana, provocando ao mesmo tempo uma insólita convergência
das políticas estrangeiras saudita e israelense.
É verdade que o golpe de Estado do general Abdel Fattah al-Sissi
resultou também de uma situação econômica desastrosa e da impopularidade
crescente de Morsi. Mesmo seus eleitores tinham perdido a confiança na
capacidade do governo de responder aos problemas do desemprego e da
corrupção. As ambições hegemônicas da Irmandade Muçulmana, que se
recusava a dividir uma mínima parcela do poder, precipitaram seu
descrédito. Elas também entraram em choque com a resistência no aparelho
de Estado, composto por policiais, juízes e fulus(dignitários
do antigo regime) visceralmente hostis à confraria. Esse “Estado
profundo” não perdeua ocasião de emergir até a superfície. Uma tarefa
ainda mais fácil pelo fato de que a Irmandade Muçulmana, ao colocar de
escanteio juízes, governadores e notáveis para impor seus próprios
homens no seio do aparelho de Estado, também estava afastando seus
aliados potenciais no seio da Igreja e dos salafistas.
O raio que se abateu sobre eles significa igualmente o fim da aura de
invencibilidade que rodeava outrora o islamismo. A confraria não era um
grupo revolucionário nem o ramo local de qualquer frente terrorista
internacional, mas sim uma organização sobretudo conservadora que
defendia a piedade religiosa, o liberalismo econômico e a caridade em
relação aos mais pobres. Ela não se arrogava nenhum monopólio sobre o
islã e não mantinha nenhuma ligação com os salafistas, tampouco com os
teólogos do Al-Azhar.3 Seus adeptos vivem hoje na prisão ou
na clandestinidade. Mais prudentes, ou mais hábeis, os salafistas do
partido Nour manifestaram seu pragmatismo demonstrando submissão ao
regime militar. No fim das contas, a esfera islâmica diversificou-se e
fragmentou-se ao mesmo tempo, fazendo emergir novas figuras fora dos
círculos escolásticos e políticos tradicionais.
Prestar contas ao povo
Durante sua breve passagem pelo poder, a Irmandade Muçulmana evitou
impor uma islamização forçada à sociedade. Seu objetivo consistia mais
em consolidar sua dominação política no terreno institucional. Foi
apenas por um acaso que, quando do golpe de Estado, o governo Morsi
defendeu-se fazendo referência ao argumento da legitimidade (chara’iya)
em vez de recorrer à lei islâmica (charia). Em relação a isso, o medo
ocidental de ver a Primavera Árabe eclodir num contágio islâmico no
Oriente Médio parecia não ter muita consistência.
No próprio Egito, o golpe de Estado militar recebeu a bênção do
movimento dos jovens Tamarrod, da Igreja Copta e das formações leigas
liberais. O liberalismo reivindicado por estas últimas não incluía
explicitamente a defesa do pluralismo político, o qual se mostra
incompatível com a exclusão da Irmandade Muçulmana. Desde então, o
pluralismo podia desaparecer totalmente. A censura imposta pelo novo
regime militar revelou-se mais implacável que aquela que reinava sob a
presidência de Hosni Mubarak. Não somente a Irmandade Muçulmana foi
riscada do mapa com uma brutalidade inédita desde a era do presidente
Gamal Abdel Nasser, como seu banimento foi acompanhado de uma campanha
nacionalista e xenófoba que associava seus militantes à imagem de
inimigos públicos a serviço do estrangeiro. Consequência inesperada da
revolução egípcia, uma presidência autocrática transformou-se em uma
ditadura militar que recorre à lei marcial e à violência legal. As
eleições não foram suprimidas, mas se desenvolvem sob um controle
estrito.
Por causa da proibição da Irmandade Muçulmana e da atomização de todas
as forças políticas do país, o Exército se impôs naturalmente. Ele não
vai deixar o poder por iniciativa própria, pelo menos enquanto contar
com a cumplicidade das potências ocidentais e dos países do Golfo, e
enquanto se considerar o suporte da sociedade.
O Egito não é presa das tensões étnicas e religiosas que minam alguns
de seus vizinhos; a hipótese de um conflito aberto parece, portanto,
descartada. Não é menos verdade que os militares não podem se contentar
em restaurar a antiga ordem. O custo de uma repressão maciça tornou-se
politicamente exorbitante, e os egípcios tomaram gosto pela força das
mobilizações de massa. O fosso entre o islamismo e o poder secular
também se arrisca a crescer mais. Alguns membros da Irmandade Muçulmana
poderiam ser tentados a pegar em armas.
Mas a principal novidade é a exigência cada vez maior, no seio da
população, de uma prestação de contas. Mesmo quando do golpe de Estado
de julho de 2013, os militares tiveram de justificar sua ação, depois
que uma iniciativa democrática organizada por grupos de cidadãos
exprimiu alto e bom som suas inquietudes. O regime está agora diante de
uma escolha delicada: ele vai ressuscitar o sistema de Mubarak, com um
general Al-Sissi passando do kaki para o terno e gravata, ou
vai preferir o modelo argelino, em que os civis têm sua chance de se
expressar, mas deixam aos militares o direito de veto sobre temas
importantes?
Em comparação, a transição tunisiana pareceria quase um caminho fácil
de percorrer. Conduzida por atores locais aparentemente desejosos por
estabilidade e pelo respeito às regras democráticas, ela foi em grande
parte poupada pelas manipulações externas. Isso se explica sobretudo por
sua geografia: ainda que vigiada de perto pela ex-potência colonial
francesa, a Tunísia raramente serviu de teatro para as disputas
geopolíticas dos interesses estrangeiros. Sua população é relativamente
homogênea no plano religioso. O pomo da discórdia mais notável, desde a
queda do presidente Zine al-Abidine ben Ali, é a luta fratricida à qual
se dedicam os islâmicos e os leigos.
O partido Ennahda, de inspiração islâmica, ganhou as primeiras eleições
livres, mas cometeu o mesmo erro da Irmandade Muçulmana: interpretou o
mandato recebido como uma porta para o poder absoluto. Rapidamente a
situação política se deteriorou, com o assassinato de vários opositores
de esquerda e o aumento potencial dos grupos salafistas, violentamente
hostis ao pluralismo eleitoral. Suas ameaças jogaram um jato de água
fria na população, pouco habituada a um clima como esse.
Na Tunísia, nenhum setor pode pretender a hegemonia, e o Ennahda formou
uma coalizão com dois partidos leigos. Os movimentos liberais e
progressistas acabaram aceitando o diálogo nacional proposto pelo
governo e trabalhando com os islâmicos – com exceção dos mais radicais,
em especial os salafistas. Todos os partidos do tabuleiro eleitoral
concordaram que o risco de uma espiral de violência política não poderia
mais ser ignorado. Além disso, a divisão entre religiosos e leigos
revelou-se menos insuperável que o previsto. Poucas coisas diferenciam
afinal os islâmicos moderados de seus rivais leigos, já que estes
últimos reconhecem com mais boa vontade a importância da religião em
qualquer novo sistema político.
Mas foi sobretudo a turbulenta sociedade civil que reativou o
calendário da transição democrática. A União Geral Tunisiana do Trabalho
(UGTT), a organização patronal União Tunisiana da Indústria, do
Comércio e do Artesanato (Utica), a Ordem dos Advogados e a Liga
Tunisiana dos Direitos do Homem tiveram voz durante o diálogo nacional.
Elas fixaram novos objetivos para o governo e pediram a ratificação da
Constituição.
Já o Exército tem um peso nitidamente menor que no Egito: pouco
numeroso em efetivos e despolitizado, ele permanece nos quartéis desde
2011. O antigo regime de Ben Ali era um Estado policial, não uma
ditadura militar. Seu governo tecnocrático e cleptomaníaco poderia muito
bem dispensar uma base ideológica. É por isso que a revolução tunisiana
aposentou as elites do antigo partido único, deixando intactas a
burocracia e as forças de polícia, que não eram ideologicamente
conectadas ao regime. A preservação dessa ossatura contribuiu para
manter uma relativa estabilidade da ordem legal. Além disso, a antiga
autocracia tinha montado uma robusta estrutura de instituições e leis,
que certamente pouco havia servido durante os dez últimos anos da era
Ben Ali, mas que pode hoje se mostrar útil para construir um sistema
democrático funcional. Precisamente porque o nepotismo de outrora era
desprovido de qualquer ideologia suscetível de reaparecer, a restauração
de um Estado autoritário parece pouco verossímil.
A Tunísia tem a oportunidade de responder às suas incertezas por seus
próprios meios, sem se preocupar com a boa vontade alheia. As potências
mundiais e regionais desempenharam um papel negligenciável na transição
em curso. Washington não colocou seu veto à entrada do Ennahda no
governo nem favoreceu este ou aquele candidato. Os países petrolíferos
do Golfo se abstiveram de afundar seus favoritos sob toneladas de
dinheiro. A França se limita a uma neutralidade circunspecta, com sua
imagem permanecendo maculada pelo indefectível apoio que deu a Ben Ali
até o último segundo de seu reinado. Em caso de sucesso, a experiência
tunisiana seria recebida como um sinal de esperança em toda a região, e
talvez além dela.
Sujeitos transformados em cidadãos
Agora que a Primavera Árabe entra em seu quarto ano, é preciso atentar
para uma busca de ingerências nos conflitos locais e uma ampliação de
seus efeitos deletérios. As linhas de frente geopolíticas, religiosas e
ideológicas abalam hoje todo o Oriente Médio. É apenas renunciando a se
imiscuir nas revoluções que o mundo exterior pode ajudá-las a renascer.
É possível, no entanto, destacar algumas tendências mais precisas para o
ano que se inicia. Para começar, as monarquias do Golfo se arriscam a
se intrometer ainda mais nos assuntos de seus vizinhos árabes. A renda
vinda do petróleo lhes permite comprar uma influência decisiva sobre
países mais favorecidos como o Egito, o Marrocos e a Jordânia, onde suas
ajudas ultrapassam as do bloco ocidental.
Em seguida, é preciso sublinhar a importância dos pactos concluídos em
período de transição nacional. Em outros contextos de democratização,
como a América Latina, os pactos de acomodação entre forças rivais foram
profundamente institucionalizados e aceitos por todos. No Oriente
Médio, em contrapartida, a lógica de divisão prevalece sobre a busca do
compromisso, de sorte que as frações se debatem pelo poder em lugar de
partilhá-lo.
Em terceiro lugar, a fraqueza das instituições locais, aliada às
intervenções mal pensadas de potências estrangeiras, forneceu munição
aos sabotadores do processo democrático. Os salafistas tunisianos e os
falsos liberais egípcios são personagens de segundo plano que não têm
nada a perder ao quebrar compromissos negociados com dificuldade. Eles
ganham em importância à medida que as instituições vão se erodindo e que
os interesses em jogo crescem. Tais fenômenos são com frequência a
marca de países em falência que não têm os meios de deter o círculo
vicioso do dilema securitário. No Iêmen e no Líbano, vários grupos
preferem pegar em armas a recorrer a um Estado incapaz de protegê-los,
meio pelo qual o enfraquecem um pouco mais.
O último ponto, mais positivo, tem a ver com a cidadania. Os povos
árabes não se percebem mais como massas de pessoas, mas como forças
cidadãs que merecem o respeito e a palavra. Se uma nova sublevação
surgisse algum dia, ela seria sem dúvida ao mesmo tempo mais espontânea,
mais explosiva e mais duradoura. Os cidadãos árabes foram testemunha
das soluções extremas às quais seus governos estão prestes a recorrer
para se manter no poder. Os regimes coercitivos também conhecem bem a
determinação das massas em “se livrar deles”. A Primavera Árabe não deu
ainda sua última palavra.
Hicham Ben
Abdallah El Alaoui é primo do rei do Marrocos, Mohammed VI, e
pesquisador visitante do Center on Democracy, Development en the Rule of
Laz, da Universidade de Stanford, Estados Unidos.
Ilustração: Mariana Zanetti 1 Edward Luttwak, “In Syria, America loses if either side wins” [Na Síria, os Estados Unidos perdem seja qual for o lado vencedor], The New York Times, 24 ago. 2013. 2 Seus seis membros são Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Kuwait, Catar e Omã. 3 Instituição principal do islamismo sunita com sede no Cairo. |
Variados temas de História Geral e do Brasil são abordados aqui. A ênfase é História Contemporânea, mas, afinal, TUDO É HISTÓRIA!
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sábado, 15 de fevereiro de 2014
A Primavera Árabe ainda não disse sua última palavra - Le Monde Diplomatique Brasil
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