Rio de Janeiro – A implementação da
política de polícia pacificadora pelo Governo do Rio de Janeiro trouxe à
população do estado a sensação de que o perfil de atuação da Polícia Militar
havia melhorado como um todo. Antes identificada por sangrentos e quase diários
conflitos armados nas comunidades dominadas pelo tráfico de drogas, pelo total
desrespeito aos direitos humanos dos moradores dessas comunidades e pela
abordagem violenta e extorsiva a qualquer cidadão de baixa renda - usuário de
drogas ou não –, a PM fluminense dava sinais, com a formação de uma nova leva
de profissionais com nova mentalidade para atuar nas Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), de que poderia iniciar uma nova etapa em sua história
centenária. Esse sempre foi um dos principais trunfos, talvez o principal, da
gestão do governador Sérgio Cabral nesses seis anos e meio de governo.
Uma série de episódios ocorridos nos
últimos dois meses, no entanto, faz com que uma nova onda de desencanto do
habitante do Rio de Janeiro com a atuação de sua PM contribua decisivamente
para o atual momento de desgaste acentuado na popularidade de Cabral. Tudo
começou com a excessiva resposta aos tumultos ocorridos nas manifestações de
rua, passou pela bárbara invasão do Complexo da Maré pelo Batalhão de Operações
Especiais (Bope), que culminou com oito mortes, e teve seu ápice com o
desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza após ser levado por policiais da
UPP da Rocinha, em uma caso ainda sem explicação.
Na mesma semana em que os índices mensais
divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) revelaram um aumento de
35% no número de “homicídios decorrentes de intervenção policial” no estado em
relação a junho do ano passado, alguns dos principais especialistas em
segurança pública do Rio de Janeiro, embora reconheçam acertos na política de
UPPs, apontam os riscos de seu esgotamento, além da expectativa de aumento das
dificuldades logísticas e operacionais com a expansão para outras comunidades.
A mudança do perfil da PM, por sua vez, ainda é considerada uma construção em
estágio inicial, como comprovam os fatos recentes: “Seria ingenuidade pensar
que se consegue mudar fundamentalmente o comportamento da polícia em um curto
espaço de tempo, seja no Rio de Janeiro, seja em qualquer lugar do Brasil”, diz
a socióloga Julita Lemgruber, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania da Universidade Cândido Mendes.
Julita concorda que a gestão das UPPs
enfrenta mais dificuldades desde que a polícia pacificadora chegou a
comunidades maiores e onde o tráfico de drogas era mais forte e enraizado, como
Complexo do Alemão, Rocinha e Mangueira, entre outras: “É claro que, no início,
com um número pequeno de UPPs, a possibilidade de acompanhamento era maior e um
maior controle era mais fácil. No início, com meia dúzia de UPPs e uma
preocupação muito grande de que o projeto se consolidasse, esse trabalho
minucioso de acompanhamento era mais simples. Na medida em que cresce o número
de UPPs, é evidente que cresce o número de problemas e a dificuldade de
controle. Então, muito do que a gente está vendo é o resultado da escala, pois
hoje você tem um número de UPPs muito grande, com milhares de policiais
envolvidos”, diz.
O sociólogo Ignacio Cano, do Laboratório
de Estudos da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), diz
que vários elementos explicam o atual momento de questionamento à gestão da
política de polícia pacificadora: “Na medida em que as UPPs vão crescendo,
evidentemente a possibilidade de incidentes e de problemas aumenta. Hoje, o
clima político contribui para o desgaste do processo das UPPs, e há também a
mudança ocorrida agora no Comando da PM, as manifestações”, diz, antes de
apontar outro elemento bastante objetivo: “Os homicídios foram caindo, não só
pelas UPPs, mas por várias políticas durante muito tempo. Mas, nos últimos
meses eles já não estão caindo mais, inclusive aumentaram. Então, há um certo
esgotamento das políticas atuais. Agora, precisamos de novas políticas para
continuar melhorando”.
Professor de História Contemporânea do
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Francisco
Carlos Teixeira é taxativo: “A política de polícia pacificadora está errada
desde o início, e era inevitável que nessa fase ela se desmantelasse. Em
primeiro lugar, o governo estadual entendeu o combate ao tráfico como sendo
ocupação de território, mas o tráfico nunca precisou de ocupação de território
para existir, como mostra a realidade em outros países como a Alemanha, a
França ou os Estados Unidos. Ele se constitui como uma rede, e ainda mais hoje,
quando envolve também tráfico de armas e lavagem de dinheiro. É uma coisa
extremamente complexa”, diz.
Essa capacidade de articulação e adaptação
do tráfico, diz Teixeira, desgasta a política de UPPs: “O tráfico não saiu das
comunidades ditas pacificadas. No momento seguinte à ocupação, mesmo no Alemão,
o tráfico já estava lá. O tráfico voltou e se instalou, se é que ele saiu. Aí,
começou uma ficção na qual a polícia pacificadora fingia que o tráfico não
existia para não desmoralizar a própria política pública de segurança, e o
tráfico fingia que não estava fazendo os seus negócios tal como antes. Quando
chegou o momento em que essa relação ficcional entrou em colapso - por mero
atrito (porque, enfim, essas partes não podem viver juntas o tempo todo sem
atrito), por questões mínimas, às vezes por questões pessoais entre protegidos
do tráfico e da polícia, às vezes por questão de propina - o negócio todo
explodiu e a tensão entre as duas partes voltou a aparecer”.
Efetivo
“A grande questão das UPPs é a
sustentabilidade no longo prazo”, diz Julita Lemgrubrer, apontando como maior
dificuldade a necessidade de envolvimento de um contingente cada vez maior de
policiais militares: “A proporção policial/habitantes nas áreas das UPPs é
enormemente maior do que no resto do estado. É um número de policiais com o
qual a cada dia se torna mais difícil contar. Além disso, o orçamento não é
elástico. Então, você conseguir incorporar ao contingente da PM um número
infinito de policiais é absolutamente impensável. É uma questão impensável para
o futuro”, diz a socióloga.
Para Ignacio Cano, a questão do efetivo
policial para atender à demanda das UPPs deve ser a principal preocupação do
governo estadual na área de segurança pública nos próximos meses: “A
experiência do Alemão, sobretudo, mostra que o contingente talvez não tenha
sido suficiente para controlar o território, e acho que agora o governo está
com receio disso. Portanto, vão tomar mais cuidado e colocar um número de
policiais maior nas próximas UPPs. O cobertor é curto no início porque o nível
do investimento em capital humano na UPP é muito elevado. O cobertor já era
curto e vai continuar sendo curto. A questão é que ele não é só curto, mais
também muito seletivo, age em determinadas áreas e esquece outras”, diz.
Francisco Carlos Teixeira faz uma
comparação: “A mesma premissa errada da política do Bush no Iraque nós
cometemos, em outra dimensão e proporção, na ocupação das comunidades do Rio de
Janeiro. Cá, como lá, você pode colocar um cara dentro de cada domicílio que
não vai resolver. O governo arrisca fazer como os Estados Unidos, que tentaram
passar de 80 mil homens para 120 mil homens e depois para 180 mil homens e
acabaram tendo de virar as costas e agora está lá no Iraque aquele inferno”.
Avanços
Apesar da constatação dos desgastes
sofridos pela política de UPPs, os especialistas em segurança pública
reconhecem os avanços trazidos, sobretudo para as comunidades beneficiadas e os
bairros em seu entorno. Para Julita Lemgrubrer, “é muito importante não jogar
fora a criança junto com a água do banho” ao se estudar possíveis correções de
rumo: “É preciso procurar realmente preservar alguns avanços que aconteceram em
função da política de UPPs, como a redução de uma série de delitos, não só nas
UPPs, mas no entorno das UPPs. A gente teve uma redução significativa na
violência letal da polícia nessas áreas. Isso não quer dizer que a violência
policial não continue e que não tenha que ser reprimida e punida. Agora, não se
pode também negar – os números estão aí para confirmar e inúmeras pesquisas
mostram isso – que houve uma redução do número dos autos de resistência nessas
áreas. Então, isso é alguma coisa que tem de ser preservada”.
Para Ignacio Cano, é preciso separar a
propaganda da realidade: “Seria fantasia – e foi uma fantasia compartilhada por
muitos – achar que a UPP iria resolver tudo e que não haveria mais problema.
Não existe isso. Vamos continuar tendo abusos, denúncias, incidentes e alguns
atos de violência. O importante é que esses fatos sejam claramente inferiores
ao período anterior como vêm sendo. Esse é um desafio da expansão das UPPs que
traz como conseqüência o aumento da probabilidade da ocorrência de incidentes e
problemas”.
Para estrangular de fato o tráfico de
drogas, Francisco Carlos Teixeira propõe uma colaboração que transcenda o
governo estadual: “Você teria que fazer um trabalho extremamente complexo com a
Receita Federal, a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária Federal, com
inteligência e, principalmente, com o controle dos fluxos de capital, para
secar o tráfico”, diz. Teixeira, no entanto, lamenta: “Mas, isso não está
disponível para ser feito porque se criou essa mítica de que aquelas pobres
pessoas que ficam de arma na mão dando uma de caubói são os chefões do tráfico,
quando na verdade não são e muitos nunca sequer tiraram o pé da comunidade. Os
grandes chefões estão fora dali, e o controle dos grandes fluxos de capital
iria revelar isso”, aposta.
Velha polícia
As sucessivas ações policiais violentas
nas comunidades e bairros sem UPP, aliadas à chacina da Maré e ao
desaparecimento de Amarildo, revelam que a sensação de que uma Polícia Militar
com nova mentalidade está sendo constituída no Rio de Janeiro se restringe a
algumas áreas do estado e que vigora a prática dos dois pesos e duas medidas,
sobretudo, em relação à população mais pobre: “Fora das UPPs, a realidade não
mudou, a letalidade continua sendo elevada, a doutrina é a de sempre. É
ingenuidade pensar que a UPP transformou completamente a polícia. Há um desafio
que caminha nessa direção, mas é claro que em paralelo nós temos ainda
helicópteros da polícia dando tiro a rodo, temos o Bope se vingando da morte do
sargento na Maré. O velho modelo de segurança continua plenamente vigente na
maior parte do território”, diz Ignacio Cano.
Julita Lemgrubrer afirma que o governo
pratica uma política dúbia: “Infelizmente, o Rio de Janeiro tem duas vertentes
de política de segurança pública. Uma, constituída pelas UPPs, para o bem e
para o mal, com o que tem de bom e ruim das UPPs, que também se constituem em
uma forma de controle autoritário dessas áreas. Agora, não há dúvida de que
você tem, em todas as outras áreas do Rio de Janeiro, a mesma polícia de
sempre, que é uma polícia violenta, desrespeitadora dos direitos da cidadania,
que em nada se diferencia da polícia que sempre tivemos. Esse é o grande dilema
da segurança pública do Rio de Janeiro. É a convivência, no mesmo Estado e na
mesma área metropolitana, de duas propostas de segurança pública
fundamentalmente diversas”.
Francisco Carlos Teixeira compara a ação
da PM na invasão da Maré e durante as manifestações de rua: “Não tenha dúvida
de que nunca deixaram de atirar com balas de verdade na periferia do Rio de Janeiro,
nas comunidades e na Baixada Fluminense. Eles só começaram a atirar com bala de
borracha na classe média porque foi na Zona Sul, foi no Centro, foi sob a lente
da televisão, inclusive da televisão internacional. Sempre foi bala de verdade
na periferia e nas comunidades. Há dois pesos e duas medidas”, diz.
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