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Peter Hakim* - O Estado de
S.Paulo
Brasil recusa Boeing foi a
manchete do New York Times após a muitas vezes adiada decisão brasileira de
gastar quase US$ 5 bilhões na compra de jatos de combate da fabricante sueca
Saab, em vez da rival americana Boeing. Representantes do governo brasileiro
insistiram em que critérios financeiros e técnicos determinaram a escolha,
rejeitando a ideia de que se tenha tratado de uma reprimenda ou um revide por
causa das atividades de espionagem dos EUA, que já tinham levado a presidente
Dilma Rousseff a cancelar uma visita de Estado a Washington, atitude quase sem
precedentes. Por que o Brasil optou pelos caças suecos é uma questão complexa
que revela muito sobre as atuais relações Brasil-EUA. Mas ainda mais vital é a
preocupação com os efeitos que essa decisão terá no futuro dessas relações.
Os laços entre americanos e
brasileiros foram abalados nos anos recentes por uma série de desacordos em
questões regionais e globais. O estrago foi particularmente grave no caso do
impasse acerca das negociações entre Brasil e Irã em 2010 sobre enriquecimento
de urânio. Em 2013 a relação enfraquecida chegou ao ponto mais baixo no
intervalo de uma geração, ou mais, por causa da revelação das dimensões da
espionagem americana no Brasil, que invadiu até as comunicações da presidente
Dilma com seus principais assessores e os arquivos particulares da Petrobrás,
estatal brasileira do setor de petróleo. Em resposta, a presidente não só
cancelou a viagem de Estado, como iniciou uma campanha internacional contra as
operações de inteligência dos EUA.
A revelação das atividades de
espionagem dos EUA e a subsequente resposta de ambos os governos reforçaram a
antiga desconfiança entre os dois países. Representantes de Washington
consideraram a reação brasileira tensa e exagerada. Para eles, o Brasil precisa
entender que a segurança dos EUA exige expansivo esforço global de
inteligência, que Washington não pretendeu prejudicar o Brasil e que essas
questões devem ser tratadas longe dos olhos do público.
Do ponto de vista do Brasil, os
EUA agiram novamente como valentões. A invasiva espionagem de Washington
sublinhou a disposição americana de obter vantagens indevidas de sua
superioridade econômica e tecnológica. Para piorar a situação, os EUA trataram
a indignação da chanceler alemã, Angela Merkel, com muito mais seriedade do que
as queixas da presidente brasileira. A diferença no tratamento não passou
despercebida em Brasília.
A escolha entre Saab e Boeing
pode ser defendida de acordo com os critérios do próprio Brasil - os custos de
compra e operação das aeronaves, a qualidade do seu desempenho e a obtenção de
acesso a novas tecnologias. Os jatos da Saab, por exemplo, são bem mais baratos
que o modelo da Boeing e o governo sueco impõe bem menos restrições à
transferência de tecnologia. Mas o avião americano, há muito tido como o
preferido pela Força Aérea Brasileira, é tecnicamente muito superior.
Não há razão para duvidar da
escolha brasileira em bases técnicas ou econômicas. A questão central para as
relações Brasil-EUA envolve o momento em que a decisão foi tomada. Após as
grandes manifestações contra a corrupção e o desperdício de dinheiro pelo
governo, e com a aproximação das eleições presidenciais, foi surpreendente o
Brasil ter optado por concluir a negociação nesse momento. Relatos da imprensa
dizem que até o alto escalão da Força Aérea foi notificado apenas poucos dias
antes do anúncio da compra. Depois de sucessivos governos brasileiros terem
adiado a decisão por anos, previa-se que ela ainda estivesse distante. Isso
indica que os brasileiros quiseram, de fato, enviar uma mensagem a Washington
sobre sua crescente desconfiança em relação ao governo americano e também
deixar claro seu desapontamento com a resposta dos EUA às críticas contra seu
programa de espionagem.
O governo americano não ficou feliz
com a rejeição do Boeing F-18, vista por muitos como mais uma reação
intempestiva à vigilância dos EUA e outro retrocesso na relação bilateral. O
governo brasileiro com certeza sabia que essa seria a interpretação de suas
ações pelos EUA e prosseguiu mesmo assim.
A disputa relacionada às
operações de espionagem é o segundo maior confronto entre Brasil e EUA nos
últimos três anos. O primeiro, envolvendo o Irã, teve custo maior e continua a
provocar estrago, ainda que os laços do Brasil com o país do Oriente Médio
tenham esfriado.
A revelação das operações de
espionagem já frustrou duas tentativas de traçar um rumo mais cooperativo e
menos contencioso para as relações Brasil-EUA. A visita de Estado da presidente
Dilma teria sido a ocasião primordial para restaurar a boa vontade entre os
dois países. Em boa medida, uma visita bem conduzida teria demonstrado a
importância regional e global do Brasil na política externa americana,
resultado que a maioria dos brasileiros claramente desejava. A decisão de comprar
os caças da Boeing teria impacto ainda maior. Isso teria apagado a maioria das
dúvidas sobre o desejo brasileiro de aprofundar os arranjos econômicos e de
segurança com os EUA e aberto caminho para nova cooperação tecnológica e
militar. Nada no horizonte se aproxima da oferta de oportunidades na visita de
Estado ou da compra dos jatos da Boeing. Por mais que sejam agora revistas pela
Casa Branca, as operações de espionagem prosseguem.
Não há caminho fácil para
solucionar o desacordo atual entre Brasil e EUA. Formalmente, a visita de Dilma
foi apenas "adiada", e não cancelada - assim ela pode ser remarcada,
mas nenhum dos dois países se mostrou muito interessado em fazê-lo. E uma
reunião de cúpula presidencial pode ser perda de tempo até que as tensões subjacentes
sejam moderadas e ambos os governos tenham a sensação de que algo de concreto
possa ser alcançado. A melhor maneira de começar pode ser os dois governos
reconhecerem que o relacionamento entre eles enfrenta sério problemas e
começarem a focar pesadamente em impedir qualquer deterioração adicional.
*Peter Hakim é presidente emérito
do Diálogo Interamericano.
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