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sexta-feira, 11 de julho de 2014

As potências redesenham o mundo - Le Monde Diplomatique Brasil


Uma águia do livre-comércio norte-americana atravessa o Atlântico para destroçar uma tropa de cordeiros europeus mal protegidos. A imagem invadiu o debate público na aurora da campanha pelas eleições europeias. Chocante, ela é politicamente perigosa. Por um lado, não permite entender que também nos Estados Unidos coletividades locais correm o risco de serem vítimas, em breve, de novas normas liberais que proibiriam a proteção do emprego, do meio ambiente, da saúde. Por outro, ela desvia a atenção de empresas bem europeias – francesas como Veolia, alemãs como Siemens – e tão apressadas quanto as transnacionais norte-americanas em processar na justiça os Estados que ousarem ameaçar seus lucros (ler artigo na pág. 12). Por fim, ela negligencia o papel das instituições e dos governos do Velho Continente na formação de uma zona de livre-comércio em seu próprio território.
O engajamento contra o Grande Mercado Transatlântico (GMT) não deve, portanto, ter como alvo um Estado em particular, ou seja, os Estados Unidos. O objetivo da luta é ao mesmo tempo mais amplo e ambicioso: diz respeito aos novos privilégios que os investidores de todos os países reclamam, talvez para recompensá-los pela crise econômica que eles provocaram. Bem dirigida, uma batalha planetária desse tipo poderia consolidar solidariedades democráticas internacionais, hoje em atraso em relação às que existem entre as forças do capital.
Nesse caso, mais vale desconfiar das duplas que se pretendem ligadas pela eternidade. A regra se aplica ao protecionismo e ao progressismo tanto quanto à democracia e à abertura das fronteiras. A história já provou que as políticas comerciais não têm conteúdo político intrínseco.1 Napoleão III casou o Estado autoritário e o livre-comércio (ler artigo na pág. 16), quase no mesmo momento em que, nos Estados Unidos, o Partido Republicano pretendia se preocupar com os operários norte-americanos, a fim de melhor defender a causa dos trustes estrelados, dos “barões voadores” do aço, que mendigavam proteções alfandegárias.2 “O Partido Republicano, tendo nascido do ódio ao trabalho escravo e do desejo de que todos os homens fossem realmente livres e iguais”, como indica sua plataforma de 1884, “se opõe irrevogavelmente à ideia de colocar nossos trabalhadores em concorrência com qualquer forma de trabalho servil, quer seja na América ou no estrangeiro.”3 Na época, já se pensava nos chineses. Mas tratava-se de milhares de trabalhadores braçais vindos da Ásia que companhias californianas de ferrovias tinham recrutado para lhes confiar os trabalhos pesados em troca de salários de fome.
Um século depois, a posição internacional dos Estados Unidos se transformou, e democratas e republicanos brincam de quem vai cantar a serenata de livre-comércio mais melosa. No dia 26 de fevereiro de 1993, pouco mais de um mês depois de sua chegada à Casa Branca, o presidente Bill Clinton tomou a dianteira graças a um discurso-programa destinado a promover o Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), que seria votado alguns meses mais tarde. Ele admitiu que a “cidade global” alimentou o desemprego e os baixos salários norte-americanos, mas se propôs a acelerar o passo no mesmo sentido: “A verdade de nossa época é e deve ser a seguinte: a abertura e o comércio nos enriquecerão enquanto nação. Isso nos incita a inovar. Isso nos obriga a enfrentar a concorrência. Isso nos garante novos clientes. Isso favorece o crescimento global. Isso garante a prosperidade de nossos produtores, que são, eles mesmos, consumidores de serviços e matérias-primas”.
Desde essa época, os diversos “rounds” de liberalização de trocas internacionais já fizeram cair a média dos direitos de alfândega de 45% em 1947 para 3,7% em 1993. Mas pouco importa: a paz, a prosperidade e a democracia exigem que se vá cada vez mais longe. “Assim como foi ressaltado pelos filósofos, de Tucídides a Adam Smith”, insiste Clinton, “os hábitos do comércio contradizem os da guerra. Assim como os vizinhos que se ajudaram para construir seus respectivos estábulos depois ficam menos tentados a colocar fogo neles, aqueles que aumentaram o nível de vida mútuo têm menos propensão para se enfrentarem. Se acreditamos na democracia devemos nos empregar em reforçar as ligações do comércio.” A regra não valia, no entanto, para todos os países, já que o presidente democrata assinou, em março de 1996, uma lei aumentando as sanções comerciais contra Cuba.
Dez anos depois de Clinton, o comissário europeu Pascal Lamy – um socialista francês que depois se tornou diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) – retomou sua análise: “Eu penso, por razões históricas, econômicas e políticas, que a abertura das trocas caminha na direção do progresso da humanidade; que provocamos menos infelicidades e conflitos quando abrimos o comércio do que quando o fechamos. Onde o comércio passa, as armas param. Montesquieu disse melhor do que eu”. No século XVIII, Montesquieu não podia, no entanto, saber que os mercados chineses se abririam um século depois, não graças à convicção dos enciclopedistas, mas na carona dos navios de guerra, das guerras do ópio e da pilhagem do Palácio de Verão. Lamy, por sua vez, não deve ignorar esses fatos.
Menos exuberante do que seu predecessor democrata (isso é uma questão de temperamento), o presidente Barack Obama dá continuidade por sua vez ao credo do livre-comércio das transnacionais norte-americanas – europeias também, e na verdade de todos os países – para defender o GMT: “Um acordo poderia aumentar nossas exportações em dezenas de bilhões de dólares, induzir a criação de centenas de milhares de empregos suplementares, nos Estados Unidos e na União Europeia, e estimular o crescimento nas duas margens do Atlântico”.4 Quase não evocada em seu discurso, a dimensão geopolítica do acordo importa, no entanto, mais do que seus hipotéticos benefícios em termos de crescimento, emprego e prosperidade. Washington, que vê longe, não conta se apoiar no GMT para conquistar o Velho Continente, mas para desviar qualquer perspectiva de reunificação com a Rússia. E principalmente para... conter a China.
Nesse ponto, a convergência também é total com os dirigentes europeus. “Vemos aumentar esses emergentes, que constituem um perigo para a civilização europeia”, estima, por exemplo, o ex-primeiro-ministro francês François Fillon. “E nós? Nossa única resposta seria nos separarmos? É uma loucura.”5 Justamente, continua o deputado europeu Alain Lamassoure, o GMT poderia permitir aos aliados atlânticos “entrar num acordo sobre normas comuns para impô-las em seguida aos chineses”.6 Arquitetada por Washington, uma parceria transpacífica para a qual Pequim não foi convidada visa exatamente ao mesmo objetivo.
Com certeza não é por acaso que o partidário intelectual mais entusiasmado do GMT, Richard Rosecrance, dirige em Harvard um centro de pesquisas sobre as relações entre os Estados Unidos e a China. Sua obra, publicada em 2013, desenvolve a ideia de que o enfraquecimento simultâneo de dois grandes conjuntos transatlânticos deve levá-los a intensificar as fileiras diante das potências emergentes da Ásia. “A menos”, escreve, “que essas duas metades do Ocidente se unam, formando um conjunto nas áreas de pesquisa, desenvolvimento, consumo e economia, ambas vão perder terreno. As nações do Oriente, dirigidas pela China e pela Índia, vão então ultrapassar o Ocidente em matéria de crescimento, inovação e renda – e, para concluir, em termos de capacidade de projetar uma potência militar.”7
O propósito geral de Rosecrance lembra a análise célebre do economista Walt Whitman Rostow sobre as etapas do crescimento: depois da decolagem de um país, seu ritmo de progressão desacelera, pois ele já realizou os ganhos de produtividade mais rápidos (nível de educação, urbanização etc.). No caso da moeda, as taxas de crescimento das economias ocidentais, que já chegaram à maturidade há diversas décadas, não vão alcançar as da China ou da Índia. A união forçada entre os Estados Unidos e a Europa constitui, então, a principal carta que lhes resta. Ela permitirá que eles continuem impondo seu jogo aos que acabam de chegar, impetuosos, é verdade, mas desunidos. Assim como nos dias que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, a invocação de uma ameaça externa – ontem aquela, política e ideológica, da União Soviética; hoje esta, econômica e comercial, da Ásia capitalista – permite unir sob o cajado do bom pastor (norte-americano) o rebanho que desconfia que em breve a pedra angular da nova ordem mundial não vai mais se situar em Washington, e sim em Pequim.
Um temor ainda mais legítimo, segundo Rosecrance, porque, “na história, as transições hegemônicas entre potências em geral coincidem com um conflito maior”. Mas um meio permitiria impedir que a “transferência de liderança dos Estados Unidos para uma nova potência hegemônica” não termine em uma “guerra entre a China e o Ocidente”. Em vez de esperar religar as duas principais nações asiáticas a parceiros atlânticos castigados por seu declínio, seria preciso tirar partido das rivalidades que existem entre elas e contê-las na sua região graças ao apoio do Japão, um país que, por temor à China, está colado ao campo ocidental a ponto de ser seu “terminal oriental”.
Mesmo que esse grande desenho geopolítico invoque a cultura, o progresso e a democracia, a escolha de certas metáforas trai no momento uma inspiração menos elevada: “O produtor que tem dificuldade em vender uma mercadoria”, insiste Rosecrance, “será frequentemente levado a se unir a uma empresa estrangeira para ampliar sua oferta e aumentar sua participação no mercado, como Procter & Gamble fez ao adquirir a Gillette. Os Estados estão diante de incitações da mesma ordem”.
É sem dúvida porque nenhum povo ainda considera sua nação e seu território como produtos de consumo corrente que o combate contra o GMT está apenas começando.
Serge Halimi
*Serge Halimié diretor do Le Monde Diplomatique.

1  Ler Le protectionnisme et ses ennemis[O protecionismo e seus inimigos], Le Monde Diplomatiquee Les Liens qui Libèrent, Paris, 2012.
2  Ler Howard Zinn, “Au temps des ‘barons voleurs’” [No tempo dos “barões voadores”], Le Monde Diplomatique, set. 2002.
3  Citado por John Gerring, Party ideologies in America, 1828-1996 [Ideologias partidárias nos Estados Unidos, 1826-1996], Cambridge University Press, 2001, p.59.
4  Coletiva de imprensa conjunta com François Hollande, Casa Branca, Washington, 12 fev. 2014.
5  RTL, 14 maio 2014.
6  France Inter, 15 maio 2014.
7  Richard Rosecrance, The resurgence of the West: how a transatlantic union can prevent war and restore the United States and Europe[O ressurgimento do Oriente: como uma união transatlântica pode prevenir guerras e restaurar os Estados Unidos e a Europa], Yale University Press, New Haven, 2013. Assim como todas as citações seguintes
http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1660 

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